Ricardo Aleixo: poesia como saída
(Jornal Estado de Minas, por Marcos Vieira e Janaina Cunha Melo - 27/7/07) Poesia como saída.
O escritor Ricardo Aleixo comemora 30 anos de literatura, prepara nova antologia e inaugura o projeto Modelos vivos, composto por livro, áudio, vídeo e performance.
Pensar projetos coletivos sem tornar-se um homem de rebanho. Essa tem sido a grande obsessão de Ricardo Aleixo, artista de muitas faces que encontrou na poesia um modo de se situar diante do mundo. Não fosse pela palavra e pelo arrebatamento da obra de Augusto de Campos, no ainda jovem escritor, seguramente seu destino teria sido outro, inimaginável para ele, que passou pelo futebol, música e artes visuais antes de encontrar a vastidão da literatura. “A poesia não serve para nada, não se compra pão com palavras, mas não se vive sem ela. O dizer poético é a dimensão amplificada da crise do humano. Não acalma. Ao contrário, nos mostra o quanto ao vivo é muito pior”, afirma o poeta, com a maturidade de três décadas rendidas à imperativa necessidade de se expressar através de versos provocativos.
Ao longo desses 30 anos, Ricardo Aleixo despertou para a convicção de que sem poesia ele seria outra pessoa, necessariamente pior, segundo avalia. Referências de todos os tempos alimentam o seu trabalho. “Não se pode ignorar o que veio antes, o que circula paralelamente e o que ainda não foi escrito. Devo o que sou a essa possibilidade de lidar com a palavra poética, minha e dos outros”, reforça. Nenhuma das outras experiências, no esporte ou nas artes, foi significativa o suficiente para levá-lo ao nível de reflexão desejado. Por sorte, ele afirma, ninguém apareceu para dizer ao adolescente negro, de família pobre, que a literatura seria um caminho inviável. Do mestre Augusto de Campos, que ele descobriu depois de ter acesso a João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Oswald de Andrade, entre tantos, Aleixo guarda a entrega à cultura brasileira. “Cada poema dele é um projeto existencial e cultural. Campos ilumina a compreensão do passado da poesia”, diz.
Aos 17 anos, Ricardo Aleixo começou a experimentar os primeiros versos, em meio a todas as crises típicas da idade. Os dilemas ainda persistem e ganharam a dimensão da trajetória percorrida. “Ainda me pergunto quem sou, para onde vou e como articular a passagem possível entre o pessoal e o coletivo. Entender como preservar a individualidade sem se isolar tem sido minha grande obsessão de uma vida inteira.” De certa maneira, esse é também o dilema da própria poesia, que parte de universo particular para levar idéias à coletividade. Para o escritor, equivoca-se quem pensa que a poesia tem problemas para se estabelecer ou se sustentar como gênero literário de muitos adeptos. “Não é que ela esteja em crise. A poesia é a instauração da crise”, afirma, pontuando a tênue mas importante diferença entre uma afirmativa e outra.
De Festim, seu primeiro livro publicado, até os dias atuais, muitas mudanças aconteceram. A maior e mais fundamental delas está na percepção de que seu trabalho interessa a muitos e não apenas a poucos amigos, como imaginava no início. Seu fazer poético tornou-se abrangente, sem que houvesse esforço além da dedicação. Para ele, o mito de que a poesia é um gênero de mercado impraticável faz parte de intenção política de manipular e cercear a liberdade dos escritores. Sua trajetória também demonstra que é possível vencer suposta “maldição” contra os poetas. “Do Modernismo para cá, estamos sendo convencidos de que nosso trabalho não dá retorno financeiro, do qual não se sustenta a existência material. Essa é uma forma de manter a poesia como algo etéreo e justificar a manipulação dos poetas enquanto sujeitos”, avalia.
A despeito dessas – falsas – verdades, Ricardo Aleixo recebeu seu primeiro pagamento decorrente de trabalho escrito em 1983, com a publicação do poema Aquele olhar de leitor, em página inteira do Suplemento Literário. “Recebi algo como um salário mínimo. Fiquei chocado ao saber que pagavam”, lembra. No início daquela década, ele ainda estava empenhado em se sustentar como músico, além de trabalhar como funcionário público. Durante anos, alimentou a ilusão de que, se mantivesse o ganha-pão afastado da poesia, poderia preservá-la imaculada, em alguma medida. “Hoje tenho todo o tempo para ela, e isso é ótimo.”
Autodidata criterioso, o poeta desenvolveu método próprio de estudos envolvendo semiótica, sociologia e filosofia, entre outras matérias. Foi a maneira que encontrou para lidar com a fatalidade de se acidentar durante um jogo de futebol. Uma bolada no rosto, aos 18 anos, exigiu repouso por cerca de três anos, cinco cirurgias e comprometimento de 70% da visão do olho direito. Durante esse período de dores atrozes, como descreve, Ricardo Aleixo desistiu de freqüentar a universidade, por falta de condições e também de vontade. “A poesia era a única saída, eu não tinha escolha.” Mas essa foi uma decisão sobretudo política, tomada com convicção. “Minha família nem teve tempo de se assustar. Venho de uma família pobre. Foi uma escolha imprudente”, reconhece.
Feliz por ter enfrentado os riscos, Aleixo colhe os frutos. Com vários projetos em andamento, ele está em fase de preparação de sua primeira antologia poética, a convite de uma editora paulista, que ele prefere não revelar até que o trabalho se consolide. Este é um momento especial, de revisão dos quatro livros que circularam bastante em Minas Gerais, tiveram lançamento nos Estados Unidos, mas chegaram com escassez aos outros estados brasileiros. Cada um deles, aponta o autor, tem histórias muito particulares, por isso vai ser necessário estabelecer critérios extra-emocionais. Ele também acaba de ser contemplado com bolsa do programa Petrobras Cultural, que lhe permitirá desenvolver o projeto Modelos vivos, composto por livro, áudio, vídeo e performance. Para realizar o kit, ele deve produzir cerca de 60 poemas inéditos.
O escritor ainda comemora ter chegado à fase de acabamento do Laboratório Interartes Ricardo Aleixo – Lira –, que deve ser inaugurado em breve. O espaço cultural em Santa Tereza está sendo preparado para abrigar acervo pessoal, documentação de curadorias (Festival de Arte Negra e Bienal Internacional de Poesia, entre outros). “Nunca pude ter em casa um espaço só para criação. O Lira atende a essa demanda. Da cozinha ao último cômodo, vai ser possível fazer arte em qualquer lugar”, conta. Violão, computadores, livros, tintas estão na lista de todos os objetos que Aleixo precisa para a criação.
O ateliê vai dispor também de pequeno alojamento para a recepção de amigos de outras cidades ou países que venham a Belo Horizonte para projetos de curto prazo. E vai oferecer atividades didáticas, como aulas e workshops, além da promoção de debates e conferências. O poeta não pretende realizar programas massivos e tem previstas oficinas de designer sonoro, uso dos sons não-musicais, acompanhamento de projetos gráficos editoriais. O artista também vai ensinar a fazer livros, passando por todas as etapas, da seleção dos textos ao lançamento do trabalho.
Ricardo Aleixo observa que esperou todos esses anos por esse momento. “Tenho know-how de pobreza, agora quero algum conforto. Vivia duro, tendo que escolher entre a cerveja e um livro novo. Agora posso ter os dois. Sou contra franciscanismo”, diz o artista, que conta haver se organizado sem apologia ao consumismo. Criou uma forma de vida frugal e preservou as conquistas do dia-a-dia. “Esse pouco permitiu que eu fizesse muitas coisas, até que os convites para palestras, viagens, aulas e a bolsa criaram uma nova circunstância”, conclui.
“A poesia não serve para nada, não se compra pão com palavras, mas não se vive sem ela. O dizer poético é a dimensão amplificada da crise do humano. Não acalma. Ao contrário, nos mostra o quanto ao vivo é muito pior”
Ricardo Aleixo, poeta
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