Ironia e humor como valorização étnica e crítica social na obra Cada tridente em seu lugar
Quero dizer que por serem leves e acessíveis talvez elas [as crônicas] comuniquem mais do que um estudo intencional a visão humana do homem na sua vida de todo o dia. (Antonio Candido)
(Por: Zélia Maria N. Neves Vaz*, publicado no sítio do LITERAFRO - Portal da Literatura Afro-brasileira www.letras.ufmg.br/literafro).
"Cidinha da Silva desponta na Literatura Afro-brasileira com a publicação de Cada tridente em seu lugar, já em segunda edição. Sua estética aproxima-se da proposta dos novos escritores afro-brasileiros – Edimilson de Almeida, Salgado Maranhão, Ronald Augusto, dentre outros – que prezam pela conexão com a causa negra, mas não abdicam do caráter artístico, ponto fundamental quando se trata da literatura. Embora seu trabalho com as letras a diferencie dos antecessores por eleger a prosa e não a poesia como proposta literária, a semelhança com a nova geração dos escritores comprometidos com a negritude torna-se inevitável. Essa analogia é possível pelo fato de Cidinha da Silva possuir uma vinculação com a afro-brasilidade, bem como com outras questões sociais, mas, sobretudo porque seu posicionamento não abafa a literariedade que se verifica de forma bastante rica na tessitura de seus textos. Assim, para meditar sobre a produção desta nova escritora, torna-se essencial verificar seu posicionamento atrelado a recursos literários como a ironia e conseqüentemente o humor, operadores da reflexão social emanada da escritura de Cidinha da Silva. Os recursos literários salientados contrastam com o engajamento explícito de muitos escritores também defensores de uma arte aliada a um projeto social, cultural e político.
Faz-se necessário neste momento adentrarmos em uma breve explanação acerca das características provenientes da obra Cada tridente em seu lugar. O referido livro é composto em sua quase totalidade por crônicas, no entanto, a escritora deixa-se enveredar em alguns momentos por narrativas definidas neste estudo como contos. Em seus textos vigora, salvo raras exceções, uma linguagem “leve”, a ponto de camuflar temas significativos, fato que propicia a um leitor mais desatento a impressão de estar lidando com histórias de pouca profundidade, criadas apenas para o entretenimento. Essa ingenuidade indubitavelmente não se inscreve nesta obra.
Cidinha da Silva engendra uma escrita na qual há a assunção de inúmeras questões sociais, que vão desde a intolerância religiosa, até a questão racial, certificados respectivamente em “O cobrador de ônibus e o deus-vaca” e “Pretos de estimação”. Não por acaso o universo afro-descendente irá emoldurar, se não todas, quase todas as crônicas e contos presentes no livro. Este se encontra dividido em três partes, sendo a primeira, em sua maioria, destinada a tratar de assuntos permeados pelo universo mítico-religioso da cultura africana. Já na segunda seção de Cada Tridente em seu lugar imperam os temas do cotidiano, como se verifica na crônica “Um passo preto canta numa viagem de ônibus”; do espaço introspectivo, presente no texto “Sobre o exercício da arte difícil e nobre de estar só”; e a sexualidade na velhice, proposta de modo delicado e bem humorado em “Aconteceu no Rio de Janeiro!”; além de outras questões presentes na contemporaneidade. Finalmente, a alteridade encontra-se expressa na terceira e última parte do livro, por meio de temas direcionados para a condição social afro-descendente. Assim, os referidos textos problematizam, por exemplo, a mulher negra como objeto sexual, em “Papo de barbearia”, ou a falta de mobilidade do negro na sociedade, verificada em “Melô da contradição”. Em “Histórias da Vó Dita”, Cidinha da Silva questiona a ausência de personagens negros nas histórias em quadrinhos e reconhece que quando eles aparecem são, na maioria das vezes, construídos por um olhar pejorativo. O questionamento acerca do preconceito racial atinge seu ponto máximo em dois textos: “Poesia num ônibus de BH” e “Pretos de estimação”.
Após esse panorama sobre os elementos caracterizadores de Cada Tridente em seu lugar, passemos à leitura dos textos. O exame de uma obra literária nos compele recorrentemente a especificar o gênero ao qual ela pertence, sobretudo quando ocorrem dúvidas acerca desse aspecto, como em nosso caso. Marcelino Freire, em seu comentário sobre o livro, antecipa o enquadramento dos textos no gênero crônica e, inegavelmente, este estilo se sobressai. A escritora narra muitas vezes cenas cotidianas, retrata flashes do dia-a-dia, relata experiências vividas, todas perpassadas por uma linguagem leve e aparentemente descompromissada, típica do gênero em questão. Entretanto, em alguns momentos, o olhar superficial do narrador, atento a elementos mundanos e rotineiros, cede lugar para um outro mais ficcional. Em outros pontos, afloram narradores de primeira pessoa, que remetem a um possível eu autobiográfico, inspirados em relatar experiências particulares e não alheias, tal qual ocorre na crônica. Em decorrência destes aspectos, a leitura de alguns textos, inseridos em Cada tridente em seu lugar, nos acarreta a incerteza: pertenceriam eles ao estilo da crônica ou estariam constituídos pelos parâmetros do conto? Em teoria literária, há muito se questiona a proximidade existente entre os citados gêneros, justificável então, encontrarmos estudiosos ocupados em promover esclarecimentos referentes a esses dois modos de composição da estrutura narrativa:
Enquanto o contista mergulha de ponta-cabeça na construção do personagem, do tempo, do espaço e da atmosfera que darão força ao fato “exemplar”, o cronista age de maneira mais solta, dando a impressão de que pretende apenas ficar na superfície de seus próprios comentários, sem ter a preocupação de colocar-se na pele de um narrador, que é, principalmente, personagem ficcional, como acontece nos contos, novelas e romances. (SÁ: 2001, 9).
Esta diferenciação surge como um facilitador para as questões levantadas, embora seja salutar a consideração de que nem sempre a distinção acima abarca de modo exemplar a criatividade de Cidinha da Silva. Seus textos não seguem a vertente tradicional do conto, sobretudo quanto à profundidade narrativa, pois a autora assume uma prática textual quase próxima do minimalismo, gênero moderno empregado por escritores que elegem a concisão e a brevidade como prerrogativas para a construção de suas histórias. Assim, não iremos nos deparar com a caracterização intensa de determinado personagem ou com a descrição minuciosa do espaço e do tempo inscritos na narrativa, práticas sustentadas pelos contistas tradicionais. A evolução dos gêneros e a conseqüente ruptura de suas fronteiras encontra-se, como se pode notar, também problematizada na obra em questão, propiciando ainda a percepção da liberdade que os escritores contemporâneos possuem de transitar entre eles e assim imporem características próprias à elaboração de sua arte. Não pretendo aqui fixar definições concernentes aos textos, se pertencem à crônica ou ao conto, de qualquer maneira esta também não constitui tarefa fácil. O intuito é, primeiramente, atestar para o leitor as nuances da obra de Cidinha da Silva e em última instância esclarecer porque emprego o termo conto e não crônica, ao longo deste estudo, que terá como orientação esses gêneros, recorrentemente citados no decorrer das análises.
Embora haja confluência entre esses estilos na obra e em certos casos nos próprios textos, a crônica se perpetua como marca dominante. A autora preza pela leveza da escrita, delineada por uma linguagem casual, geradora de suposta superficialidade. Seria esta a justificativa para muitos críticos intitularem a crônica como um “gênero menor”? “ ‘Graças a Deus’, - seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica mais perto de nós”, afirmou Antonio Candido em seu artigo “A vida ao rés do chão”. (CANDIDO: 1992, 13) Embora o crítico tenha asseverado tal aspecto da crônica e o próprio título do estudo nos indique um gênero pouco sofisticado, ao longo das explicações de Candido esse ponto de vista será questionado, na medida em que ele próprio comprovará a riqueza da crônica, verificada em textos de Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Rubem Braga, dentre outros. Da mesma forma, Cidinha da Silva explora de maneira exemplar as possibilidades permitidas pelo gênero e discute, de modo bastante prazeroso – por meio da ironia, do humor – temáticas que já constituem em si o peso da seriedade. Antonio Candido, no texto citado, estrutura sua explicação para a crônica, em consonância com o que Cidinha realiza em seus textos:
Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição.(CANDIDO: 1992,13-14)
Em paralelo a esta “teorização” do crítico encontra-se a crônica “Um passo preto canta numa viagem de ônibus”, na qual aparece expresso essa despretensão aliada à profundidade, em nosso caso temática. O exemplo em questão evidencia o percurso num coletivo e o retrato da seguinte cena:
No ônibus vazio, seguia tranqüila observando os resultados de três dias consecutivos de chuva de verão (...). Em uma parada próxima ao final da linha, entra uma voz forte e melodiosa no coletivo (...). Bonitas, a música e a voz. Estiquei o pescoço para ver quem era o cantor e não vi ninguém. Ouvi um barulho de tamancos e olhei para o chão. Então vi um rapaz negro com o tronco muito desenvolvido contrastando com as pernas finíssimas, dobradas, próximas às mãos, que faziam o papel dos pés. (Cada Tridente em seu lugar, p. 37)
O relato sobre este artista de ônibus prossegue, revelando a forma de sustento do rapaz: a contribuição dos passageiros agraciados pela voz do cantor. Através do excerto acima, pode nos parecer que o olhar da cronista direcionado ao personagem orienta-se no intuito de criar uma imagem de comiseração em relação a esse sujeito. Impressão muito óbvia e sensacionalista para a escritura de Cidinha da Silva. Logo em seguida, a autora quebra essa expectativa ao rememorar outra maneira de abordar passageiros no ônibus, conhecida nacionalmente pelos que costumam utilizar o transporte coletivo. No propósito de realizar uma comparação entre o cantor e outros jovens, os quais se apossam do sensacionalismo para obter dinheiro, a fala destes últimos aparece reproduzida e denominada na narrativa de “ladainha insuportável” (SILVA: 2007, 38): “se-nho-res pas-as-gei-ros, des-cul-pe in-co-mo-dar a vi-a-gem de vo-cês”. A assunção do humor no trecho é inevitável, tornando-se ainda mais latente na descrição do discurso: “e toca a contar a saga da família de dez irmãos, pai desempregado e mãe com câncer, todos passando fome, só ele tem condições de pedir, e pedir, como todo mundo sabe, era melhor do que roubar” (SILVA: 2007, 38). Neste momento a escritora teria espaço para adotar uma postura moralista e assim criticar aqueles que se aproveitam da piedade alheia, ou ainda poderia justificar essa atitude, pois sem dúvida não há uma distribuição de renda adequada no país, sendo necessário empregar meios atípicos para buscar a sobrevivência. Mas não, o texto opta pelo riso, deixando essas conclusões a cargo de seu interlocutor. Percebe-se que a reflexão sobre tais problemas surge inevitavelmente, no entanto, não será a escritora a responsável direta por ela e sim o leitor com seu conhecimento prévio acerca das desigualdades sociais.
Em seguida, a narrativa retoma seu foco – o cantor do ônibus – para realizar um confronto com o preconceito nem sempre assumido quando introjetado pelo leitor. Ocorre então o seguinte desfecho:
(...) enquanto girava o corpo sobre as mãos, dirigindo-se à porta da frente para ir embora, o rapaz cantor reconhece uma amiga e começam a conversar. (...) Ele conta que na semana anterior tinha faltado à faculdade porque havia tido coágulos nas pernas e a dor, arretada, não o deixara sair de casa. Naquela semana, todavia, voltaria às aulas e à capoeira (balança o tronco cheio de ginga) (SILVA: 2007, 38)
A fala do artista nos surpreende de forma gradativa, primeiro porque afirma freqüentar a faculdade, segundo por se declarar praticante da capoeira, dança na qual as pernas se fazem fundamentais. O desfecho surte intenso impacto, pois imaginávamos, ao longo do texto, um rapaz que havia encontrado em sua arte o único meio de se manter produtivo socialmente. As adversidades advindas de suas necessidades especiais não impediam o cantor de exercer outras atividades realizadas pelo ditos “normais”, consciência adquirida somente ao final da crônica. Interessante observar como Cidinha da Silva oferece a impressão de um relato despretensioso, como se quisesse apenas compartilhar uma cena testemunhada em uma viagem de ônibus. Subitamente a cronista desconcerta o leitor, na medida em que ele se descobre portador de um olhar preconceituoso e piedoso em relação ao artista. Numa interpretação mais aprofundada, nota-se a reivindicação da escritora por um tratamento igualitário desses sujeitos e o refutamento de uma postura comiserativa, responsável por reforçar a discriminação dessa parcela da populacional.
Em decorrência da comicidade e da narrativa excessivamente curta, “Só derreal!”, alia-se à mesma idéia da despretensão. Num primeiro instante não se certifica claramente os questionamentos provenientes desta crônica, como se a intenção não fosse outra que não o riso. Condensada em um flash, mesclado ao humor, a crítica, emanada de poucas linhas, atinge uma dimensão inversamente proporcional à brevidade do texto. Comprovemos a partir do exemplo:
O menino negro aborda o casal de gringos brancos na sorveteria. Pega no braço do mais viril e faz gestos de abrir e fechar a boca, para frente e para trás. Antes de dizer qualquer coisa, o mais feminino intervém: ‘ele quer sorvete, darling’. (...) O garoto, nervoso, se ajoelha e repete os gestos com a boca. Acrescenta mais um gesto, as mãos abertas, dez dedos. O preço. (...) ‘Baby, vamos embora. Você oferece sorvete e ele parece que só aceita se você der mais dez reais. (...) Na saída da sorveteria, enquanto os dois caminham de mãos dadas, o menino esbraveja: ‘Gringo pão-duro! Faço por cinco’.” (SILVA: 2007, 89).
Sem imprimir juízo de valor, a cronista compele o leitor a meditar a respeito da cena narrada. Nesse sentido, o potencial crítico desta apresenta-se como elemento determinante no preenchimento das lacunas ocasionadas pela estética concisa, por meio da qual se edificou a crônica. Um leitor detentor de conhecimento crítico não deve se deixar levar apenas pelo viés cômico, deste recurso é preciso emergir a seriedade temática explorada na crônica: a prostituição infantil. O riso convertido em reflexão configura um elo para a percepção da realidade cruel que nos cerca no cotidiano.
A ironia presente no título – “Só derreal!” – comprova o posicionamento de Cidinha da Silva no tocante à exploração sexual. Notemos que o preço, retratado através da reprodução do linguajar dos garotos marginalizados, constitui um irrisório pagamento, ratificado pelo advérbio, o qual antiteticamente exige em troca o peso de um “serviço” perverso. Além disso, ao final da crônica, a fala insistente do garoto exprime sua ingenuidade e nos possibilita a conclusão de que não foi permitindo a ele compreender a situação social cruel, humilhante, pela qual o condenaram.
Em meio a um retrato metonímico do personagem, pois o mesmo representa a parte de uma grande maioria explorada na mesma função, Cidinha da Silva reverbera sua crítica se resguardando do discurso pedante, politicamente correto. A ironia e o humor descartam o cunho panfletário, certificado em obras de alguns escritores, assim como atestado na escrita de Machado de Assis, o escritor que “nunca opta pelo confronto aberto. Ao contrário, vale-se da ironia, do humor, da diversidade de vozes, e de outros artifícios para inscrever seu posicionamento”, tal qual afirmou Duarte (2007) em seu ensaio “Estratégias de caramujo”. Nota-se nessa assertiva que Machado, e da mesma forma nossa escritora, provoca e, mesmo, rechaça aquele leitor ingênuo, incapaz de verificar as nuances expressas no texto. Assim, ambos reivindicam um olhar arguto sobre seus escritos.
O próximo exemplo a ser trabalhado – “Pretos de estimação” –, ajusta-se mais ao gênero conto. Caracterizado por um narrador de primeira pessoa, relator de experiências particulares, o texto, também conciso, na linhagem contemporânea do mini-conto, oblitera o olhar direcionado a elementos cotidianos e alheios, fato que justificaria a transição da crônica para a narrativa curta. Nela serão, como na anterior, assegurados o humor e a ironia, neste caso, no ensejo de empenhar-se no tema da alteridade negra, mais especificamente do preconceito racial. O título, também irônico, antecipa a postura discriminatória de cor, propalada por uma personagem repugnante, impressão causada graças à exata construção de sua imagem pela escritora. Já na introdução da narrativa é concedida voz a uma mulher, que se diz consternada pela morte de seu “mucamo”. A referida expressão permite à narradora crer no nome de um gato, entretanto, ela se surpreende quando a personagem declara ser o “mucano” um empregado da família, equiparado, pela “dona”, a um animal:
Tão querido, tão limpinho. Nunca teve ninguém, o pobrezinho. Depois que minha mãe morreu – que Deus a tenha em bom lugar – minha irmã mais velha que nunca gostou de morar em apartamento, ficou com dó e levou ele pra ela. Ele morava nos fundos da casa, perto do canil. Era um preto de confiança, mais fiel à nossa família que os cachorros do papai”. (Cada tridente em seu lugar, p. 83-84).
Ao presenciar as atrocidades proferidas pela mulher, a narradora, negra como o “mucamo”, engasga com o “empadão” e repentinamente sofre um acesso de tosse, cena responsável pelo tom hilário, explícito neste ponto do texto. O recurso humorístico não nega, entretanto, a denúncia percebida no trecho, sobretudo ao explicitar o processo de zoomorfização do negro presente no discurso racista da personagem. Na seqüência, em um diálogo com uma amiga, a mesma figura “evolui” de mulher preconceituosa, para mulher preconceituosa e fútil e reforça ainda seu desprezo pelos negros quando o assunto é relacionamento estável:
“Ah... nem te conto, tô apaixonada! É um deus grego em cima de um touro”. “Ih... já vi tudo, é caso de rodeio?” “Ele não é qualquer um meninas. Tem talento estilo. É um legítimo Alcântara Machado. Al-cân-ta-ra, viu minha gente? Não é Alcantra como esse povo ignorante diz por aí. (...).” “Mas e o cara da semana passada?”, alguém pergunta. “Quem?” “O negão cubano? Aquilo era só para a manutenção” (Cada tridente em seu lugar, p. 84).
A voz de enunciação presente no excerto propaga uma fala repleta de preconceitos em relação aos que não possuem tradição familiar, adquirida obviamente por meio do poder econômico. Um antigo estereótipo também insurge no texto, aquele vinculado ao negro como objeto sexual, o qual vitimava não o homem, como explora Cidinha da Silva, mas a mulher. A mudança de paradigma parece escancarar um preconceito inerente à figura masculina e igualmente à feminina, assim, a partir da reflexão permitida pelas palavras da personagem, o negro desponta como um arquétipo da figura do prazer, descartado quando o interesse é inexistente. Quanto a esse quesito, torna-se relevante explicitar o ponto de vista contrário da voz narrativa, indubitavelmente inscrito na construção da imagem antipatizante da mulher presente no texto. Além disso, a aversão criada no leitor pela personagem não o permite compactuar com as opiniões difundidas por ela, a leitura se apresenta, desse modo, como recurso importante na extinção do preconceito.
A denúncia da exploração sexual, certificada no conto, remonta à consciência étnica da autora, elemento que a torna parte integrante da Literatura afro-brasileira. Assim, contrária a criações preconceituosas concernentes aos negros, Cidinha da Silva, combate essas acepções há muito difundidas em obras de renomados escritores como Aluísio Azevedo, no Cortiço, Jorge de Lima, com seu poema “Nega Fulô”, para citar alguns, como alude Domício Proença Filho, no artigo “A trajetória do negro na literatura brasileira”.
Nessa mesma vertente crítica, encontra-se o conto “Luana”. Nele há a apresentação dos personagens, a ambientação do espaço e ocorrência do clímax, motivos os quais corroboraram o enquadramento do texto no referido gênero. A narrativa problematiza uma temática recorrente na contemporaneidade: a violência presente em comunidades carentes, no caso específico da história, na periferia de São Paulo. O clímax do conto fica a cargo do assassinato da personagem Luana, conhecida por sua beleza negra e por representar uma exceção, entre os que a cercam, ao ingressar na Faculdade. Ela era, por esses motivos, o orgulho de todos onde morava. A morte de Luana se justifica por uma discórdia infundada ocorrida entre os “amigos e conhecidos” (SILVA: 2007, 62) da moça e “um jovem meio alterado” (SILVA: 2007, 62), em um ônibus, no trajeto para casa. Após a discussão, os seguintes fatos são retratados:
O garoto entra em casa e pega uma arma. Pega a moto e o irmão que, a contragosto, vai ajudá-lo a resolver uma parada. (...) A turma já desceu do ônibus e está concluindo os dez minutos de caminhada (...). O rapaz da arma passa para o banco do carona, o irmão passa pelos jovens gritando e atirando. Desespero total. Luana tomba abraçada aos cadernos. (...) No hospital, a notícia: Luana morreu. (Cada tridente em seu lugar, p. 62)
Como uma perscrutadora do social, a escritora, quando não observa para narrar o universo a sua volta, cria um narrador em terceira pessoa, no intuito de assumir a função de um personagem responsável por evidenciar a realidade violenta, comum nos grandes centros urbanos. O conto apresenta-se como um dos raros momentos em que a autora opta por impingir uma seriedade maior na escritura e assim realizar sua crítica, a qual erige-se sempre na mesma direção: o próprio leitor será o construtor da reflexão permitida pelo texto.
O tom ficcional imperante em “Dublê de Ogum” o torna um dos exemplos mais fortes de conto presente no livro. Contido na primeira parte da obra, a qual se vincula a um universo mítico-religioso da cultura africana, no texto é narrada a história de um garoto que, mesmo após a infância, insistia com brincadeiras infantis ao acreditar ser um super-herói com sua espada de plástico e sua capa de prata. A mãe e a avó do adolescente o encaminham ao psiquiatra, profissional que se respaldava nos sonhos do paciente para desvendar seus possíveis distúrbios. O universo onírico é utilizado como recurso para descrever as características do orixá Ogum, pois o garoto sonhava pertencer a um lugar “onde todo o mundo era preto e ele também” (SILVA: 2007, 24), além disso, “vivia no coração da montanha mais alta e os moradores avisavam aos estrangeiros que aquela era a casa de um homem jovem, muito grande e muito forte, ferreiro de profissão” (SILVA: 2007, 24) . O menino em seu sonho era, ainda, aquele que auxiliava as pessoas a seguirem seus caminhos, como se comprova o relato do garoto ao rememorar as fantasias vivenciadas no universo onírico: “(...) outros ouviram dizer que se rogassem a ele, o guardião da montanha e da forja, seus caminhos seriam abertos”. “Dublê de Ogum” surge no intuito de ratificar a tradição religiosa africana, por meio de um personagem que, na verdade, não tinha problemas psicológicos, tal qual acreditavam a avó e a mãe, mas sim fora agraciado como sendo um filho de Ogum, conclusão da própria psicóloga ao final do conto: “Um dublê de Ogum, ela intui.”
Nesse exemplo, o caráter corrosivo da crítica de Cidinha da Silva, é silenciado no desejo de entoar um “canto” exaltatório da cultura africana. Para isso a escritora nos apresenta as especificidades do orixá Ogum. Este era, segundo consta no livro Mitologia dos Orixás, um guerreiro morador da terra Ifé, no alto de uma colina, detentor do segredo do ferro e condenado por seu pai a não descansar “de dia nem de noite./As estradas seriam sua morada./Para sempre andaria por elas,/ajudando os viageiros que se perdem nos caminhos/e deles recebendo oferendas para sobreviver” (PRANDI: 2001, 100).
Há também em Cada Tridente em seu lugar narrativas estruturadas por meio da confluência entre a crônica e o conto, como no caso de “Domingas e a cunhada” e “Poesia num ônibus de BH”. No primeiro texto, encontra-se a marca da alteridade, mas não do negro e sim do homossexual. A forma sutil com que a autora trabalha esse tabu induz o leitor, num primeiro momento, a não acreditar no que lê, fato justificado pelo preconceito ainda imperante no meio social. Mas o texto não oferece margem a dúvidas e a autora não hesita em iniciá-lo da seguinte forma: “Elas dormem juntas e isso é público, mas ai de quem as declarar amantes. A casa tem apenas um quarto, cuja porta sempre fica aberta e donde se vê uma cama de casal”. (SILVA: 2007, 45) No conto narra-se a história de Domingas e Arminda, cunhada da primeira, personagem que fora abandonada pelo marido e, justamente este fato termina por incentivar a união das duas mulheres, selada por carta/declaração de Domingas: “Minha flor de mandacaru, depois de mês viajando, cheguei a uma terra onde tem água nos rios. (...) Minha estrela-guia foi a lembrança daquela noite de lua cheia que cê dormiu nos meus braços. (...) Agora cê já sabe onde eu tô. Pega o barco e vem. Domingas.” (SILVA: 2007, 47) A construção de personagens pertencentes ao meio rural, onde não há espaço para relações que não sejam as heterossexuais, causa um certo choque, mas ele logo é quebrado pela beleza da história de Domingas e Arminda, cúmplices e desejosas de uma vida melhor quando vão para a cidade. Dessa maneira, Cidinha da Silva rompe com o preconceito do leitor ao promover nele uma reflexão e, conseqüentemente, um início, talvez algo mais, de aceitação dessas relações ainda discriminadas socialmente.
Em “Poesia num ônibus de BH”, no qual aprece a marca de um possível eu autobiográfico, a autora narra suas angústias e deixa explícito como os resquícios do período escravista ainda estão presentes nela e também em sua cidade natal: “Belo Horizonte é uma imensa casa-grande. Um sobrado mal assombrado por móveis de madeira maciça trazidos da casa-grande das fazendas. (...) tudo revestido com tons sombrios da hierarquia racial. Gemidos pelos cantos e porões”. (SILVA: 2007, 78) O móvel de madeira surge como motivo no texto para a escritora explanar a sua própria história, quando vivenciou o preconceito racial: “A primeira vez que vi um daqueles móveis coloniais de madeira maciça (...) foi na casa do Gallo, colega de faculdade (...). Entrei e não sei o que mais me aterrorizou, a tal peça colonial (...) ou a cara incrédula e repressora dos pais do Gallo. Quem era aquela preta que entrava pela porta da frente?”. (SILVA: 2007, 79) Percebe-se que é justamente no passado que Cidinha busca a explicação da discriminação para desvelar no decorrer do texto uma capital mineira fortemente marcada pelo preconceito de cor. Esta difícil realidade aflora no enredo como algo latente na vida da escritora, que temia ser a qualquer momento surpreendida por uma atitude racista, tal qual se verifica no decorrer da narrativa.
Cidinha da Silva, destaque na nova geração dos escritores inseridos na Literatura Afro-brasileira, engendra uma arte bastante atenta aos fatos cotidianos, sobretudo aqueles que dizem respeito aos problemas sociais da contemporaneidade e à população afro-descendente. No prefácio de Cada Tridente em seu lugar, Edimilson de Almeida Pereira ratifica a postura literária da escritora: “a trajetória intelectual de Cidinha da Silva mostra sua opção por descer do mirante da história para estar entre as pessoas que fazem os fatos de outra história, silenciada porque pertence aos menos favorecidos”.
*Graduanda em Letras pela UFMG.
REFERÊNCIAS:
CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés-do-chão” In: A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
DUARTE, Eduardo de Assis. “Estratégias de Caramujo” In: Machado de Assis afro-descendente – escritos de caramujo [antologia]. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Pallas/Crisálida, 2007.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. “A estrada é uma coisa, o caminho é outra”. Prefácio. In: Cada tridente em seu lugar. 2 ed. Belo Horizonte: Mazza edições, 2007.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PROENÇA FILHO, Domício. “A trajetória do negro na literatura brasileira” In: Estudos Avançados – Revista do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Vol. 18, nº 50, jan-abr. 2004.
SÁ, Jorge de. A crônica. 6 ed. São Paulo: Editora Ática, 2001.
SILVA, Cidinha da. Cada tridente em seu lugar. 2 ed. Belo Horizonte: Mazza edições, 2007.
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