“Quem vai viver e quem pode morrer”: Sueli Carneiro analisa a violência no Brasil

(Entrevista concedida a Diony Soares. Fonte: Irohin) "A doutora em Filosofia da Educação Sueli Carneiro, diretora do Geledés - Instituto da Mulher Negra, foi a conferencista da solenidade de abertura do V Copene, que aconteceu no começo da noite de terça, 29, no Teatro Goiânia, o mais tradicional da capital do estado de Goiás. A solenidade contou com a presença de várias autoridades, dentre elas, o ministro Edson Santos, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Sueli Carneiro concedeu entrevista exclusiva para o Ìrohìn, na manhã desta quarta-feira, 30. D.S. – Qual é a sua avaliação da conjuntura de violência urbana que caracteriza o Brasil na atualidade? Sueli Carneiro – Eu venho trabalhando o tema da violência, especialmente contra os jovens negros, no interior do conceito de biopoder proposto por Michel Foucault. É um conceito que tem um alcance explicativo muito grande das dinâmicas de vitalismo e de mortalidade no Brasil. Vitalismo daquilo que assegura uma condição privilegiada de reprodução das condições de vida para as populações brancas, o que cumpre uma dimensão do biopoder, aquela de assegurar a vida dos segmentos sociais que são considerados os prioritários, os eleitos como os grupos desejáveis, e na outra dimensão abandonar à morte populações consideradas indesejáveis. Para mim, o paradigma disso é o valor diferenciado que a vida tem de acordo com racialidade no Brasil. O que se percebe, por exemplo, na repercussão que se tem na opinião pública quando a violência urbana atinge pessoas brancas das classes médias e na indiferença, silêncio e conformismo com que são tratadas as mortes sistemáticas que ocorrem com a população negra em geral e com os jovens negros, em particular. Isso, a meu ver, acena para uma sociedade, na qual o Estado tem o agente executor da sua política com caráter eugênico. Uma visão eugenista na medida em que há evidentemente uma proteção superior para os grupos humanos que são considerados brancos e um desprezo pela vida de pessoas negras e não-brancas. Segundo algumas reflexões do antropólogo Luis Eduardo Soares, os padrões de assassinato que vitimam jovens negros já apresentam um déficit censitário. Então me parece que não dá para considerar esta matança impune de jovens negros e a indiferença que ela provoca a não ser como decorrente de uma política de Estado, que é aceita pela sociedade, segundo a qual há uma parcela de seres humanos que pode estar exposta ao extermínio. Ao fim e ao cabo, o que se processa é uma limpeza étnica. Ou seja, essa violência contra a população negra seria aquilo que Michel Foucault chamaria de um instrumento de assepsia social. É assim que opera o racismo institucional, realizando desejos de grande parte da sociedade de se livrar da “mancha negra”, como uma vez foi dito por Rui Barbosa. D.S. - A despeito disso tudo, eu fiz uma breve revisão dos títulos dos trabalhos que receberam aceite para apresentação neste V Copene e detectei apenas cinco abordando a temática Violência. Como você analisa o tratamento da violência pelas/os intelectuais negras/os, bem como pela academia em geral? Sueli Carneiro – Eu não tenho uma reflexão sistemática sobre este tema, mas percebo que isso é um fenômeno que você identifica tanto na sociedade civil quanto na academia. Certa resistência para lidar com a temática Violência. Acho que é um tema ameaçador que tem implicações muito profundas. Creio que são estas implicações que tem a ver com quem vai viver e quem pode morrer. D.S. - Isso seria mais um dos dispositivos do biopoder. Algo do tipo: “não vamos nem pensar, nem falar nesse assunto”? Sueli Carneiro - Eu acho que há uma resistência entre nós para enfrentar o tema. È preciso estudar. É preciso pesquisa para perceber este silenciamento. É como se houvesse um acordo tácito de silenciamento em relação a esta dimensão genocida da sociedade brasileira que parece que nós mesmos, negros, intelectuais negros, pesquisadores negros, temos dificuldade de lidar. E talvez no campo acadêmico tenha a ver muito com a resistência para lidar com categorias que nós, negros, consideramos que expressam a nossa experiência histórica e que a academia se recusa. Uma parte constitutiva desta forma particular de tratar o problema racial na sociedade brasileira em que escamotear é um elemento fundamental. Então não se tem repertório conceitual teórico desenvolvido para trabalhar estes temas e quando isso é feito é descaracterizando a dimensão racial do fenômeno. Eu creio que há um processo de silenciamento. Por exemplo, eu só consegui trabalhar isso na minha tese com apoio no conceito de biopoder do Foucault. Não encontrei instrumentos teóricos conceituais para lidar com isso com autores nacionais ou com o pensamento nacional. Acho que as ciências humanas no Brasil refletem este esforço de camuflar toda a complexidade que a questão racial tem na sociedade brasileira. Isso se manifesta na ausência ou na restrição do uso de um conjunto de categorias que para nós dariam conta do fenômeno. Objetivamente, há uma restrição para trabalhar com a noção de raça, de racismo e outras noções que para nós, negros, são os termos que concretamente expressam as contradições sociais que nós vivemos e que são efetivamente cerceados pela academia sendo chamados de repertório ideológico e não categorias científicas de análise. D.S. – Neste sentido, você poderia abordar sucintamente os percalços das/os intelectuais negras? Sueli Carneiro – O desafio de constituir noções, conceitos, categorias e teorias que efetivamente expressam a experiência histórica dos negros na sociedade brasileira; a persistência das contradições com novas dimensões e com novas complexidades; e a resistência da academia em admitir a nossa ótica para a compreensão das relações raciais no Brasil. É um problema de hegemonia de uma ótica branca sobre a realidade das relações raciais. Essa ótica, esses saberes são poderes que se afirmam muitas vezes negando a possibilidade da emergência de interpretações e conceituações alternativas. Eu acho que este congresso busca dar resposta para essas coisas. O Copene tem sido um espaço fundamental e necessário de aprofundar esta reflexão sobre as aporias dos pesquisadores negros. Eu acho que as pessoas que estão aqui estão buscando caminhos alternativos para as suas pesquisas, para a afirmação das suas óticas e para a construção de um campo em que possa se afirmar um pensamento negro".

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