Fátima Oliveira fala ao Estado de Minas sobre as Damas do Sertão

(Por: Carlos Herculano Lopes) "A médica Fátima Oliveira lançou, recentemente, o romance Reencontros na travessia: a tradição das carpideiras (Mazza Edições), no qual histórias de amor se entrelaçam com a trajetória de tia Lali, sertaneja que tem o dom de cantar incelências, encomendar almas e amparar seus irmãos na hora da morte. "Há carpideiras em todo o mundo. Carpir é um rito de passagem, uma prática da religiosidade popular ainda presente em muitos lugares do Brasil, sobretudo nas regiões suburbanas e rurais do sertão. O choro das carpideiras é um dom e é real. Nada de falsidade, de teatral", afirma a autora a Carlos Herculano Lopes. Carlos Herculano: Como surgiu a idéia de escrever sobre as carpideiras? Fátima Oliveira: A inspiração de um romance é complexa, latente e pulsa na gente, sem que detectemos exatamente de onde vem. É difícil de dizer a hora do clique, da eureca. É uma inquietação que aparece, desaparece... Um vai-e-volta que delicia e também angustia... Que traz alegrias, mas também sofrimentos. É algo que jorra, que brota e vai num crescendo... É um vendaval. E a gente no meio dele, durante todo o tempo em que escreve, aprendendo a ter a flexibilidade do bambu, que enverga, mas não quebra... As benzedeiras, rezadeiras, tiradeiras de benditos e cantadeiras de incelências estão em minha história de vida, com suas doces magias, seus poderes inexplicáveis, seus segredos e mistérios, que dão um ar solene e mágico ao sertão... Prantear um morto cantando "incelência" é um dom, uma arte, uma deferência. Escrevi o romance para compartilhar um aspecto belo, inquietante e envolvente do sertão, que explode na religiosidade das carpideiras, mulheres simples, aparentemente comuns, porém lindas e sensuais, e que adoram perfumes. Carlos Herculano: Sua história se baseou em fatos reais, ou é pura ficção? Fátima O. É uma obra de ficção, na qual, deliberadamente, enfatizei a concepção filosófica de que a vida é travessia, exibindo minhas raízes e vivências sertanejas. É uma história de amor. Fala de amores e de prazeres, ancorado no cotidiano de carpideiras. Todavia, tenho a convicção de que escrevemos sobre o que impregna a nossa mente, consciente ou inconscientemente. Muitos fatos, ambientações, isto é, os cenários descritos e pedaços da própria história podem ter muito de minhas vivências. Não sei dizer quais. Mas não tenho dúvida de que fui inspirada por carpideiras que conheci em minha infância e adolescência; e outras com quem conversei quando escrevia o livro. Todas, mulheres donas de si. Livres. E cheirosas. Muito cheirosas. Carlos H. Em sua cidade natal, Graça Aranha, no sertão maranhense, onde nasceu, você chegou a conviver com as carpideiras? Fátima O. Fui criada tendo medo de alma. Muito medo. Mas em Graça Aranha, ir às sentinelas – a prática de velar os mortos – era uma obrigação. E quem não fosse, era certo que o defunto viria puxar o pé à noite. Era o jeito ir, desde bem pequena. Lá as sentinelas, existem, ou existiam, pois não vou lá há mais de 25 anos, como pontos de encontros. Impressionava-me muito como mulheres, em geral analfabetas, no máximo de "pouca leitura", que falavam um dialeto do português, rezavam ladainha em latim! Quando adolescente ganhei um missal. Em latim, é claro. E tive a oportunidade de conferir que elas falavam era em latim mesmo. Desde então as imagens daquelas mulheres fazem parte de mim. Calos H. Qual é a importância delas em pleno século 21? Fátima O. A carpideira é reconhecida como rezadeira, é vista como portadora de um dom, entendida como uma pessoa que tem acesso a Deus. Logo, tem poderes respeitáveis. Mulher sábia, desvenda mistérios do âmbito do sobrenatural e exerce a função de cuidadora espiritual. Isto é, de protetora. Como decorrência, goza de prestígio. Muito prestígio. É assim em todo o mundo. Nada a ver com acreditar ou não em seus dons. Elas apenas existem. E se impõem com suas presenças imponentes na hora do sofrimento. E mitigam nossas dores. Compreendo que o dom de carpir é parte de uma visão filosófica de que a vida é travessia e o viver é sempre um estar indo". (Mulher sábia, desvenda mistérios do âmbito do sobrenatural e exerce a função de cuidadora espiritual. Estado de Minas, sábado, 20 de setembro de 2008. Caderno PENSAR, página 2).

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