Memória da escrita

(Por: Miguel Sanches Neto). "Ai, que vontade de morrer!, ela disse quando descobriu o equívoco. Mas tudo que conseguiu foi chorar, lavando os restos da noite que ainda se grudavam em seus olhos. Sentou-se na mesma cadeira em frente à escrivaninha e ficou olhando para o escritório. Era ali que ela se colocava depois de cada texto que o marido escrevia na Olivetti portátil. Ele a chamava, fosse a hora que fosse, e lia aquela página tirada das escuridões que ninguém nunca devassava. Tão silencioso na vida cotidiana, era um atormentado que vertia suas lavas pela cratera da máquina de escrever. Ele lia lenta e amorosamente, corrigindo com uma caneta de tinta verde os problemas que encontrava no conto. Mas quem usa canetas desta cor? Ela se perguntava, olhando o marido com aqueles olhos azuis fixados na folha, num esforço para não errar a correção. Ele lia, ela ouvia. Não entendia nada de literatura, e sempre terminava com a frase de aprovação: ficou muito bom! Se não dissesse exatamente assim, algo se quebrava entre os dois. Ele com certeza sabia que esta aprovação entusiasmada era para o marido e não para o texto, mas se habituara aos elogios, um artista sempre precisa de alguém que acredite incondicionalmente no que ele faz. Terminada a leitura, muitas vezes o dia estava amanhecendo e ele nem fora dormir, ela seguia para a cozinha, preparava um café e logo ele chegava para o ritual. Bebiam em silêncio, e se olhavam como na época do namoro, e então ela amava mais do que tudo aquele homem que não cabia na vida doméstica, mas que não se revoltava. Havia a casa, os barulhos na cozinha, as vozes na televisão, o telefone que tocava pouco, o rádio ouvido baixinho pela diarista, os carros passando na rua, sons que eram suspensos depois das 22 horas, quando começava o marulho das letras mecânicas. O trabalho martelado da máquina embalava sempre o sono dela. Ele batia rapidamente, num fluxo seguro, até terminar a folha, e ela então ouvia o barulho do papel sendo trocado, adorava o ruído das microengrenagens se movendo, e de novo as teclas, e ela pensava nos dedos másculos do marido fazendo aquele trabalho que exigia tanta delicadeza. Imaginava os dedos dele como bailarinos num palco, movendo-se elegantemente. Dormia com o som da máquina e com as imagens que isso suscitava, sabendo que, na manhã seguinte, ou no meio da madrugada, ele a acordaria com um beijo, o rosto alegre de menino, e aqueles olhos azuis, meu Deus, que iluminavam tudo. E os dois seguiriam para o escritório improvisado no quarto que deveria ser de visitas, e ele começaria a leitura e aquele mundo por onde ele vagara a noite toda também seria povoado pela esposa. Venha comigo, ele dizia. Mas o convite não era apenas para ir ao escritório, e sim àquelas regiões da ficção que só ele conhecia. Depois de terminado um conto, ele ficava semanas revisando, a caneta de tinta verde criando uma mata de correções, de cortes e acréscimos. Quando estava quase ilegível, ele mandava para uma datilógrafa profissional, uma senhora que trabalhara em vários escritórios e passava a limpo a produção de escritores e professores. Retornando a cópia saneada, ele a guardava sem ler. Deixa descansar um pouco, ele dizia. Ou: vamos deixar o texto respirar. Logo no começo do casamento ela perguntou por que mandava para uma datilógrafa se era tão hábil com a máquina de escrever. Para o conto passar por outra pessoa, para ele começar a deixar de ser meu, ele disse. E como ela ficasse em silêncio, ele ainda explicou: um texto tem que ir aos poucos nos abandonando. Foi desta frase que se lembrou quando ele morreu, após tantas idas ao hospital, época em que a máquina ficou parada, em que o escritório acertou o seu fuso-horário com o resto da casa. Agora era o autor do texto que abandonava o mundo, e de uma vez. Poderia suportar tudo, menos o silêncio das noites sobreviventes, que estavam sendo infindáveis. Tentara dormir com o rádio ligado, mas não era a mesma coisa. Colocara uma tevê no quarto. Também não funcionou para embalar seu sono. Passaram-se os anos, tantas coisas mudaram. Ela arranjou alguns namorados, mas não aceitava que eles entrassem no apartamento. Ali, ainda vivia o casal interrompido pela morte prematura de um deles. Nunca se ligou a ninguém, mas continuava buscando homens, ou seriam apenas personagens? Buscar era uma maneira de esperar. E ela continuava esperando o marido. Os seus cabelos branquearam, as máquinas de escrever desapareceram do mercado, ela só via propaganda de computadores, e as lojas de informática tomaram conta da cidade. Como o seu marido escreveria agora? Melhor não pensar nisso. À noite, tomava o seu Valium 10. Mesmo assim acordava antes do nascer do sol e com uma boca amarga de ressaca. Mas esta madrugada, ela reconheceu os sons da velha Olivetti. Não podia ser. E ela queria que fosse. Levantou-se rapidamente e saiu em busca do marido há tanto tempo morto. Assim que ele terminasse o conto, sentaria na mesma poltrona e ouviria a leitura. E aprovaria tudo com aquela frase que nunca mais usara. Ao chegar no quarto ainda escuro, o som era mais intenso. Acendeu a luz e viu tudo tão vazio. Do lado de fora, uma chuva de pequenos granizos dedilhava sonoramente a vidraça do escritório, compondo um texto de água".

Comentários

Jéssica Balbino disse…
Oi Cidinha, muito boa esta postagem...
sempre te acomapanho por aqui. Quando puder, dá uma olhada no meu blog tbm: www.jessicabalbino.blogspot.com
tem uma ação lá que eu acredito que vc vá gostar !
Pimenta disse…
Ai, que lindo..E me deu medo Cidinha, também tenho medo do valium das noites, coisa que só quem chegou na metade co caminho da vida acompanhado sabe como é...
Vou secar meus olhos.
bjo

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