Literatura para nossas crianças
(Texto assinado pelo QUILOMBHOJE, dedicado ao professor José Luanga Barbosa, companheiro e colaborador dos Cadernos Negros, falecido no dia 04 de julho de 2011, autor do conto “Identidade”, publicado no Cadernos Negros 32).
"Algumas coisas, de tão acostumados que estamos com elas, acabam parecendo ser “naturais”. A representação do negro nos livro infantis e infanto-juvenis, por exemplo, é uma delas. Na verdade, há uma ausência de representação positiva do negro. Incrível que na maioria dos livros paradidáticos adotados pelas escolas o afrodescendente, quando não está ausente, está geralmente sub-representado sob a forma de personagens com as quais as crianças não querem ou não conseguem se identificar.
Espantoso é que essa situação se perpetue ainda hoje, de forma “naturalizada”: é “natural” não vermos personagens afrodescendentes positivas nos livros infantis e infanto-juvenis. É tão “natural” que parece que a maioria das pessoas não está ligando muito para isso: as crianças têm pouco interesse pela leitura; para os professores, questões desse tipo passam a ser secundárias, diante de tantos problemas referentes ao sistema educacional; os pais optam por seguir a cartilha do que está "naturalmente" aí; assim as coisas acabam permanecendo como estão.
Quem quer estimular nas crianças o hábito da leitura sabe que por vezes esse caminho apresenta muitas dificuldades. Oferecer a elas livros não basta, é preciso que nos coloquemos como exemplo, lendo. No entanto, em relação às crianças negras, será que o fato de elas pouco se verem representadas de uma forma prazerosa nos livros infantis e infanto-juvenis não contribui para o seu afastamento da leitura?
Há algum tempo a média de livros lidos pelos brasileiros girava em torno de 1,8 livros por ano. Essa média passou para 4,7 livros/ano, contra, por exemplo, 10 livros/ano dos EUA. Mesmo nossos hermanos argentinos leem 5,8 livros/ano. Desses 4,7 livros lidos pelos brasileiros, 3,8 são didáticos. Certamente os programas de incentivo à leitura desenvolvidos pelo último governo têm contribuído para o crescimento do acesso aos livros.
Mas nesse universo de leitura, o mercado e os leitores ainda continuam em patamares bem antigos. Os livreiros e o sistema educacional ainda não foram suficientemente sensibilizados pela lei 10639 para ofertar em quantidade livros infantis e infanto-juvenis protagonizados por afrodescendentes.
Nossas crianças ainda não encontram, por exemplo, facilmente um herói negro, a despeito de termos na vida real a referência de Zumbi dos Palmares e outros.
Embora tenhamos o livro “Zumbi, o Pequeno Guerreiro”, o zumbi que a maioria das crianças conhece é o dos filmes norte-americanos − na verdade uma salada que mistura ghouls (demônios da mitologia árabe, habitantes dos cemitérios) com o haitiano zombi ou nzumbe, uma espécie de “deus”.
Tivemos revistas em quadrinhos com a personagem Luana, temos vários autores, como Kiusam de Oliveira, Cidinha da Silva, Edimilson Pereira, Esmeralda Ribeiro, Kayodê, Allan da Rosa, Sacolinha, Maria Rita, entre outros, que escreveram livros para crianças com uma visão “de dentro”, em que é difícil ocorrerem certos deslizes, como o recentemente acontecido na cidade de Londrina, na qual o Ministério Público mandou recolher livros didáticos que se propunham a “vivenciar" a cultura afro e indígena, mas cujo conteúdo era equivocado.
Sem dúvida é fundamental termos referências afrodescendentes positivas, talvez mesmo heróis, como abordado no conto “Identidade”, do CN32, para ofertarmos às nossas crianças de todas as cores e ajudá-las em sua formação e autoestima. A questão é se a maioria se dá conta disso e se as pessoas estão dispostas a exigir isso dos professores, do mercado e de si mesmas.
Podemos e devemos dar a devida atenção a uma literatura infantil e infanto-juvenil com personagens afrodescendentes positivas para que crianças e jovens de todas as cores se vejam e vivam com mais intensidade o prazer da leitura."
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