Obra de Cidinha da Silva é analisada no Seminário Mulher e Literatura
Há pouco terminou o seminário "Mulher e Literatura", em Brasília. Tive oportunidade de conhecer e abraçar duas autoras que muito admiro, Geni Guimarães (A cor da ternura) e Ana Maria Gonçalves (Um defeito de cor). Contabilizei 4 trabalhos sobre aspectos dos meus escritos: uma participação em mini-curso do prof. Eduardo Assis, da UFMG; uma comunicação de Susana Carneiro Fontes, pesquisadora da UERJ, sobre meu conto "Dublê de Ogum" - "Espaço, corpo e memória: decifração e recriação no conto Dublê de Ogum." Um poster da estudante de Letras da UFG, Pollyanna Marques, sobre a 1a edição do Tridente. Estive lá na fila do gargarejo para ouvi-la e fiquei orgulhosa de um livro meu ter sido objeto de trabalho tão esmerado. Ao que parece, a comissão avaliadora também gostou, pois o poster da Pollyanna foi classificado em primeiro lugar. Por fim, o doutorando da UFMG Marcos Fabrício também apresentou belo trabalho, desta feita sobre duas crônicas do Tambor, "Amor na pós-modernidade" e "O outro amor". O Fabrício, atendendo a meu pedido, fez a gentileza de enviar o texto para postagem no blogue. Segue abaixo. Leiam e comentem.
Os desacertos comunicacionais nos escritos de Cidinha da Silva, por
Marcos Fabrício Lopes da Silva (Doutorando – FALE/UFMG).
RESUMO: Nesta comunicação, pretendo destacar e analisar, nos escritos de Cidinha da Silva, a crítica dirigida aos desacertos comunicacionais que prejudicam as relações afetivas entre o Eu e o Outro na pós-modernidade. Para tanto, foram selecionados para análise os textos “O outro amor” e “Amor na pós-modernidade”, que fazem parte do livro Você me deixe, viu?: eu vou bater meu tambor!, de 2008.
"A literatura, ressalta Antenor Antonio Gonçalves Filho, ocupa, na prática cultural, “um lugar de privilégio, como exercício de liberdade, de inquietação e de perplexidade” (2000, 13). Ignoradas pela cultura patrimonialista conduzida pelo poder oficial do Estado e/ou pela “mão invisível” do Mercado, a pobreza material e a pobreza de espírito, enquanto temáticas, experimentam um acolhimento irrestrito e ímpar no campo literário das produções simbólicas. O tratamento radical de tais questões espinhosas se faz presente no empenho de escritores que endereçam seus textos à realização de uma crítica voltada ao fenômeno da concentração dos bens materiais e imateriais nas mãos de uma elite hegemônica, que se afirma como orientadora e detentora dos comportamentos a serem seguidos ou perseguidos pelas demais classes sociais. A escrita-tambor de Cidinha da Silva rivaliza com o barulho ensurdecedor das músicas ligeiras, que visam acomodar escutas superficiais oriundas de uma armação perceptiva embotada, automatizada pelas sombrias rotinas do cotidiano segregador e desigual.
No livro Você me deixe, viu?: eu vou bater meu tambor! (2008), Cidinha da Silva deixa repercutir, de maneira afirmativa, um conjunto de vozes que sistematicamente são interditadas pela ideologia dominante. Trata-se de composições rítmicas, cuja batida oferece um histórico de resistências identitárias, que protagonizam a luta em defesa da expressão da alteridade. Na contracapa da referida obra, Nazareth Fonseca empresta outro sentido relevante ao ato de bater tambor como se este fosse um rito de criação literária desenvolvida por Cidinha da Silva:
Bater tambor, neste livro, tem múltiplos significados, sempre ligados à vivência da sexualidade pilhada em desassossego que é, aliás, o mote reiterado no livro. A busca constante de afeto, amor, sexo faz-se sintoma de um corpo atormentado, em desassossego, mas é também expressão de vitalidade (2008, contracapa).
Para empregar uma preciosa observação cunhada por Conceição Evaristo, podemos dizer que a escrita-tambor de Cidinha da Silva adquire “um sentido de insubordinação” (EVARISTO, 2007, 20), no momento em que a autora, unindo ativismo e arte em sua literatura, dedica seus textos para fazer frente ao enquadramento violento da diversidade social. Nesse sentido, vamos comentar, em especial, dois textos presentes no mencionado livro de Cidinha da Silva, “O outro amor” e “Amor na pós-modernidade”. O foco de nosso estudo se concentra na análise de uma temática comum aos escritos em questão: a crítica feita pela autora aos desacertos comunicacionais que prejudicam as relações afetivas entre o Eu e o Outro na pós-modernidade.
No conto “O outro amor”, Cidinha da Silva elogia a ousadia publicitária expressa na composição de um anúncio de jeans, no qual, junto ao produto em questão, uma cena homoafetiva ganhou destaque. Tal fato escandalizou a Justiça Brasileira, que resolveu “barrar” a campanha, apresentando como motivo a infração de atentado violento ao pudor. A decisão judicial foi questionada pela escritora, havendo naquela atitude uma ação preconceituosa, de origem homofóbica. Vejamos como se deu o andamento de tais fatos, na perspectiva da autora:
No século XXI o amor ousou dizer o nome e foi retirado do outdoor por força de liminar. Dois homens lindos e fortes se beijavam. Era tudo igual às outras propagandas de jeans. Nada de camisa. Calça semi-aberta, pêlos pubianos à mostra. Mas os detratores alegaram atentado violento ao pudor (SILVA, 2008, 43).
Nota-se que a medida descabida adotada pelos juristas, que deveriam zelar pelo bem-estar social, sem estabelecer distinções de qualquer espécie no tratamento dos cidadãos, acaba justificando a nomeação dada pela escritora aos agentes da lei em questão: “detratores”. Detrator é aquele que detrai, difama, diz mal. No caso, Cidinha da Silva expõe o comportamento heterossexista de agentes da Justiça Brasileira, que, ao invés de combater a homofobia e promover a alteridade, se comportou como cúmplice do processo opressivo movido pela repulsa abusiva frente às relações afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo.
Ao longo do conto, Cidinha da Silva, dando prosseguimento ao questionamento do comportamento judicial estigmatizador e estereotipado, enumera um conjunto de atentados violentos ao pudor que fazem jus a essa nomenclatura, mas que são ignorados ou superficialmente observados com rigor legal e censura fiscalizadora pelas instâncias de poder responsáveis pela defesa do Estado Democrático de Direito. Eis o conjunto de ofensas às leis ou à moral pública reveladas pela escritora:
Universitário de Vectra abusando de menina vendedora de balas no semáforo, não é atentado violento ao pudor. Promessa de sanduíche no McDonald’s. Estupro, alegação de consentimento, também não (...)
Nem as rampas antimendigo, para morador de rua não dormir embaixo de viaduto, constituem atentado violento ao pudor (...)
Tampouco violenta o pudor de outrem, um governador de Estado estampado nas primeiras páginas de todos os jornais do país, empunhando uma escopeta, numa visita à Academia de Polícia. Não configura atentado violento ao pudor o uso do rap para ambientar o clima dos exercícios de defesa e ataque no escuro, simulado por policiais daquela mesma instituição (SILVA, 2008, 43-44).
Como podemos perceber, tais ocorrências revelam situações insuportáveis que exibem a ausência de práticas sociais de acolhimento mútuo, em que a instância do Outro é inferiorizada pela arrogante manifestação identitária do Eu. O filósofo Mario Sergio Cortella ressalta que os latinos usavam uma expressão para “eu”, que é a própria noção de ego, e duas para o não-eu: alter – o outro, e alius – estranho. Diante de tais distinções elementares, Cortella esclarece: “entender a alteridade é ser capaz de olhar o outro como outro e não como estranho” (2009, 31). Trazendo tal abordagem para a compreensão do conto “ O outro amor”, de Cidinha da Silva, percebemos que o Outro é tratado numa construção egóica como alius e não como alter. Alius, em português, significa, além de estranho, “alienígena”, “alienação” e “alheio”. Nesse sentido, revela-se como os homens da lei interpretam o amor homossexual, considerando-o uma atitude estranha, alheia, que fere a moral e os bons costumes. Porém, quem estipula tais parâmetros, diferentemente de simbolizar uma universalidade globalmente atendida, representa uma particularidade ortodoxa e detentora da “ordem do discurso”: a matriz heterossexual reacionária.
Cidinha da Silva denuncia a existência, em pleno seio do Poder Judiciário, do ódio, do preconceito e da repugnância nutridos contra os homossexuais. A intolerância, dissimuladamente, foi confundida com pudor. A autora demonstra que não houve do ponto de vista ético um acolhimento legal endereçado a proteger a diversidade sexual existente na sociedade. Para fazer justiça aos fatos, sem pré-julgamentos moralistas, Cidinha da Silva busca na expressão da alteridade fundamentar uma compreensão essencialmente pluriafetiva: “eu digo que dois homens adultos que se beijam é ato de outra magnitude. É amor. É fulgor. É paixão. E os arautos do pudor que se lasquem” (SILVA, 2008, 44).
A autora belorizontina, em outro conto, “Amor na pós-modernidade”, prossegue a sua escrita vigilante, ao mostrar mais uma vez a existência de um desacerto comunicacional que prejudica as relações afetivas entre o Eu e o Outro. Trata-se de um ruído unilateral que bloqueia o funcionamento dialético da dinâmica social em rede. A exacerbação da ideologia do individualismo, no entender de Cidinha da Silva, explica a seguinte conjuntura salientada pela escritora:
Quão novo é esse jeito pós-moderno de deixar as coisas na superfície. No limite da pele, das línguas, do sexo. É proibido aprofundar, se envolver (...)
Risquem-se do dicionário as palavras compromisso e entrega. Extingam-se do breviário as conjugações dos verbos: amar, cuidar, entrelaçar, encantar, plantar, colher.
Apague-se o brilho dos olhos de expectativa do próximo encontro. Substitua-se o verbo encontrar por manter contato. Substitua-se o suor das mãos enamoradas pela sequência de beijos em bocas mil (SILVA, 2008, 47-48).
O recorde de beijos na boca, em pleno amor ‘fast-fútil’, faz mais sentido que as alianças construídas por mãos dadas e por todo o sentimento do mundo compartilhado pela convivência desafiadora de egos e incentivadora de acertos coletivos. “Manter contato”, por sua vez, significa preservar a distância entre os seres, sem estreitar muito os laços, pois o compromisso pode ser comprometedor. Sob tal parâmetro, um contrato de interesses comuns é o máximo que se deve almejar em uma associação entre os indivíduos. Face ao exposto, compreendemos melhor o comentário contundente de Adorno e Horkheimer: “o que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama ‘verdade’, mas a ‘operation’, o procedimento eficaz” (1985, 20, grifo do autor). O refúgio no individualismo hedonista e privatista, criticado por Cidinha da Silva, revela-se como a atual prática anti-social vigente nos tempos pós-modernos. Ou seja, a nova era individualista inviabilizou a autoridade do ideal altruísta, desculpabilizou o egocentrismo e legitimou o direito de cada um a viver para si próprio. Estimula-se, assim, a auto-suficiência identitária que fundamenta “a cultura do self-love”, segundo destaca Lipovetsky (1994, 58). O narcisismo, que marca a personalidade preponderante da chamada pós-modernidade (SEVERIANO; ESTRAMIANA, 2006, 41), encontra uma abordagem satírica, por conta do teor irônico empregado por Cidinha da Silva, a ponto de a narradora do conto preferir a Pré-história à Pós-Modernidade, o que se trata de uma escolha ousada, feita à contramão do avançar do tempo e em oposição explícita ao retrocesso sentimental hoje experimentado de maneira massificadora e narcotizante:
Ah, que saudade da Pré-história, quando as pessoas namoravam e se casavam. Quando casar era mais do que dividir despesas e ter sexo seguro aos domingos à noite, depois do Fantástico.
Que saudades dos tempos em que Baco fazia a festa dos amantes. Nestes tempos pós-modernos, a energia e a disposição dos ficantes é definida por alucinógenos, energéticos e drogas diversas (SILVA, 2008, 48)
Em termos afetivos, os amantes, como admiradores e cúmplices do Outro, estão saindo de cena. Entra em cartaz o PSF. Como explica Cidinha da Silva, tal sigla significa o insignificante: “parceiro(a) sexual fixo(a), flutuante, fugaz. Depende da constância do ‘F’”. Ou seja, da aventura casual sem compromisso, do sexo sem nexo.
Verifica-se, portanto, nos painéis culturais destacados por Cidinha da Silva o retorno ao Eu concebido como refúgio ante à sociedade, considerada incapaz em satisfazer as aspirações do indivíduo, o que representa uma descrença nos ideais coletivos. Somado ao fenômeno do “neo-individualismo”, temos, conforme pode se perceber no conto em questão, a presença do “imediatismo” e do “hedonismo” (SEVERIANO; ESTRAMIANA, 2006, 39). O culto ao corpo, a posse, o gosto de si mesmo, a exigência de vivência imediata do prazer canalizam os interesses anteriormente direcionados para a busca de transformações nas estruturas sociais e na conduta individual. Egocentrado, particularista e hedonista, o narcisista busca viver intensamente o momento, desprezando o passado e negligenciando o futuro. Sedutor e predominantemente manipulador, busca apenas a própria vantagem e só necessita do outro, conforme salienta Cidinha da Silva em seus escritos, como instrumento de confirmação e admiração do próprio “Eu”. Eu grandioso significa Outro apequenado: prejuízo para a expressão da alteridade."
Referências:
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
CORTELLA, Mario Sergio; LA TAILLE, Yves de. Nos labirintos da moral. 5.ed. Campinas, SP: Papirus 7 Mares, 2009.
EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 16-21.
GONÇALVES FILHO, Antenor Antônio. Educação e literatura. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
GOERGEN, Pedro. Pós-modernidade, ética e educação. 2.ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2005.
LIPOVETSKY, Gilles. O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos. Lisboa: Dom Quixote, 1994.
_____. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1985.
SEVERIANO, Maria de Fátima Vieira; ESTRAMIANA, José Luis Álvaro. Consumo, narcisismo e identidades contemporâneas: uma análise psicossocial. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.
SILVA, Cidinha da. Você me deixe, viu?: eu vou bater meu tambor! Belo Horizonte: Mazza Edições, 2008.
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