Onde andará a boa e velha liberdade?


 
Sempre, sempre, sempre que a gente falava nela, tinha alguém pra comentar que “aquela lá é mais velha que a Morte”. Quando eu era pequeno, achava que era mesmo, porque conhecia a Morte daqueles desenhos em que ela aparecia com um pano cobrindo a cabeça e foice na mão. A diferença era que a Morte andava de pé, inteira, enquanto que a Velha, que também usava um pano cobrindo a cabeça, andava curvada, como se fosse a metade de um corpo. A outra metade só andava se apoiada em um pedaço de pau que tinha o dobro de sua altura e parecia o cabo de uma foice que, de tando ser arrastada pelo chão, tinha gastado a lâmina. Sinal da sua velhice. Era por isso que todo mundo, até os mais velhos, como a minha avó de sangue, chamava a Velha de Vó. Não tinha outro nome nenhum; era só Vó mesmo.
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Quem é essa garotinha?, ou “A partir de que idade se pode comessar (*) a torturar uma criança?”

É assim que Idelber Avelar analisa a segunda pergunta desse título: “¿A partir de qué edad se puede empesar a torturar a un niño? É a frase assombrosa que escolhe Martín Kohan para começar o seu Dos veces junio. A frase é encontrada por um recruta numa mesa de recados de uma delegacia policial argentina, em 1978.
 
Mas empezar em espanhol se escreve com z. O erro ortográfico introduz um corte, uma distração, um cisco no horror da pergunta. Fornece o mote para a operação notável que realiza esse romance: falar do terror absoluto com uma voz que não percebe, não se dá conta. Ele fala do apocalipse de dentro dele, como se ele não estivesse acontecendo. O protagonista tem um tom neutro, asséptico.”
 
Foi também dessa frase e dessa análise que me lembrei quando, assombrada pela vida real, li a pergunta-título do post publicado no blog do Hospital e Maternidade Santa Joana:
“Minha filha tem o cabelo muito crespo. A partir de que idade posso começar a alisá-lo?” O post é ilustrado com a foto de uma linda garotinha negra e de cabelos crespos que, pelos critérios de quem o escreveu, poderia ser muito mais bonita se os alisasse: “Com a adesão cada vez maior às técnicas de alisamento, algumas mães recorrem a essas alternativas para deixarem as crianças mais bonitas.” Na verdade, grande parte do texto do blog do Hospital Santa Joana foi plagiado de outro texto publicado no site Bolsa de Mulher.
 
Nenhum dos textos, em nenhum momento, questiona os motivos de essas mães e essas garotinhas quererem alisar seus cabelos. De acordo com os dois sites, é para as crianças ficarem mais bonitas.
*** O estereótipo racista introduz um corte, uma distração, um cisco no horror da pergunta e no fato de usarem uma criança negra e de cabelo crespo para ilustrar a matéria. ***
 
Ninguém pensa que o mais sensato, o mais sensível, o mais humano seria dizer para uma criança negra que ela é bonita do jeito que é. Que essa coisa de não ser bonita, ou tão bonita, porque tem o cabelo crespo, o cabelo duro, o cabelo ruim, é “coisa inventada por racistas, que pensavam que tudo que vem do branco é melhor e mais bonito do que o que vem do negro. Veja só, que povo burro! Eles tanto disseram isso que muita gente acreditou, e acredita até hoje. Mas você, que é inteligente e linda, não vai cair nessa, né? E aposto que vai ensinar exatamente isso para quem te disser o contrário…”
Quando crescerem, que essas crianças, assim como toda mulher negra, tenham a liberdade de querer ou não alisar os cabelos, pelos mais diversos motivos. Mas que não sejam nunca acuadas pelo racismo e pela necessidade de se encaixarem em estereótipos racistas que definem o branco como o ideal de beleza a ser seguido, desejado e alcançado. Desde há muito tempo. Desde muito cedo.
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A gente tinha a maior curiosidade em saber mais coisas sobre ela; quem era, como tinha ido parar ali. Ninguém sabia de onde ela tinha vindo, pois tinha chegado antes de todo mundo. Falavam que tinha sido escrava, mas ela nunca confirmou. Também, nunca negou. A gente fazia muitas perguntas que ela parecia não ouvir, embaçando olhos de um jeito que se assemelhavam a cegos, embora com o poder de ver a distância, onde os nossos não alcançavam. Não sei se era um transe, como muitos diziam, mas era nesse momento que elas contava as histórias.
 
Primeiro, histórias de bicho que falava, árvore que falava, rio que virava gente… Era tudo misturado, uma bagunça só. Até o dia em que as histórias dela, mesmo sendo ainda mais absurdas do que antes, começaram a fazer sentido. Pelo menos tinham apenas gente falante, começo, meio e fim. Foi quando ela, sentada em um tamborete que alguém tinha trazido para o meio da rua., os dedos tortos como raízes brotando do bastão de madeira que a fazia andar, contou-nos em segredo: “Sou uma princesa”.
 
A gente, a meninada, começou a rir, né? Porque… Sei lá por que…. Mas era engraçado imaginar a Vó vestida de princesa, dessas de televisão, e a gente combinou que, de noite e de brincadeira, ia deixar uma coroa de papelão em frente à casa dela. As mães brigaram com a gente. Teve menino que apanhou pra aprender a respeitar os mais velhos. A gente respeitava, gostava demais dela, e ficou muito feliz de ver que ela tinha gostado da coroa, que colocava na cabeça toda vez que ia contar histórias, que passaram a ser todas sobre o tal reino onde ela era princesa. Ninguém, nem ela, sabia onde ficava esse reino, que às vezes parecia ser só dentro da cabeça dela, ou em qualquer lugar, ou em lugar nenhum. Mas, para nós, de tanto ouvir falar dele, era cada vez mais real.
 
Equilibrar a coroa fazia com ela endireitasse o corpo, erguesse a cabeça, usasse o bastão como instrumento de majestade, e não de velhice. Só andava de coroa. Teve quem fez vaquinha e comprou uma coroa dessas de loja, dourada, com pedras e brilhos. Mas a Vó nem ligou, pois gostava mesmo era da nossa, de papelão.
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Onde está o mapa da Porta do Não Retorno?

“(…) É claro que a Porta do Não Retorno não é nenhum lugar, mas a metáfora do lugar. Ironicamente e, talvez, apropriadamente, não é um lugar, mas uma coleção de lugares. Um deslizamento de terra na África, sobre o qual um castelo foi construído, uma casa de escravos, une maison des esclaves. Firme o suficiente para desaparecer ou se desenvolver, vaidoso o suficiente para sobreviver aos séculos. Um lugar no qual ocorreu um certo número de transações, talvez a mais importante delas sendo a transferência de personalidades. A Porta do Não Retorno – real e metafórica como alguns lugares são, mítica para nós, espalhados hoje pelas Américas. Ter o próprio pertencimento alojado em uma metáfora é uma trama voluptuosa; habitar uma tropa; ser um tipo de ficção. Viver na Diáspora Negra é, eu acho, viver como uma ficção – uma criação dos impérios e também uma auto-criação. É como ser um ser vivendo dentro e fora de si mesmo. É como captar o sinal feito por alguém sendo ainda incapaz de escapar dele, exceto em momentos de normalidade transformados em arte. Ser uma ficção em busca de sua metáfora mais ressonante é ainda mais intrigante. Então eu estou escavando mapas de todos os tipos, do jeito que algumas ficções fazem, discursivamente, elipticamente, tentando encontrar suas individualidades transferidas.
 
Então eu tenho colecionado esses fragmentos (…) – descoordenados e muitas vezes relacionados apenas pelo som ou pela intuição, pela visão ou pela estética. Eu não visitei a Porta do Não Retorno,  mas contando com cacos aleatórios da história e com a memória não escrita dos descendentes daqueles que passaram por lá, incluindo a mim, estou construindo um mapa da região, prestando atenção às faces, ao desconhecimento, aos atos não intencionais de retorno, às impressões limiares. Cada ato de recordação é importante, mesmo olhares de pavor e desconforto. Cada partícula de sonho é evidência.”
 
Acima, um mapa para alguns dos meus sentimentos, (mal) traduzido das páginas 18 e 19 do livro “A map to the Door of no Return – Notes on belonging“, de Dionne Brand.
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Quando, misturadas às histórias do reino, a Vó começou a contar histórias da escravidão, teve muita gente que parou de ouvir. O grupo grande que formávamos em torno do tamborete virou metade.”De tristeza, basta as da vida”, disseram alguns. Era muita história triste mesmo, mas a gente gostava de ver ela contar, e ficou melhor pra nós, que chegávamos mais perto, que fazíamos perguntas. A Vó fingia que não escutava e, tempos depois, enfiava a pergunta no meio de uma história e dava a resposta meio sem dar, deixando a gente a pensar naquilo, querendo saber se tinha entendido mesmo, trocando impressões com os outros. A gente então começou a anotar as perguntas num caderno, com o nome de quem tinha feito, pra apostar a quem ela ia responder. Eu fiz só uma, e achei que ela não ia responder nunca, que tinha ficado brava comigo por eu duvidar dela. Eu perguntei como uma princesa podia ter virado escrava.
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Já beijou sua preta hoje?

Li recentemente, aqui no Blogueiras Negras, o belo e necessário texto Relações Interraciais – Isso não é sobre amor, da Larissa Santiago. Também recentemente ganhei o belo e necessário livro de contos “Se7e Diásporas Íntimas“, do poeta e prosador soteropolitano LANDE ONAWALE. Pesquisando sobre o Lande, descobri que são dele os versos “reaja à violência racial: beije sua preta em praça pública”. Já faz algum tempo que li o interessante livro “Carnal Knowledge and Imperial Power – race and the intimate in colonial rule“, de Ann Laura Stoler. E, juntando tudo, não dá para não pensar na atualidade de tema tão antigo: as relações afetivas das mulheres negras, desde seu papel como concubina e prostituta, importantíssimo no estabelecimento e na manutenção da ordem colonial. De todos os tempos. Estigma que perdura até hoje: afinal, negra é pra trepar ou pra casar?
Os versos de Lande, junto com uma foto de um preto beijando sua preta, estamparam a capa do jornal do Movimento Negro Unificado, em junho de 1991. Colo abaixo, pra contribuir com a conversa, parte da entrevista que Lande concedeu a Silvia Regina Lorenso de Castro, na elaboração de sua tese “Corpo e Erotismo em Cadernos Negros: a reconstrução semiótica da liberdade“, págs. 129 e 130:
Para Onawalê, é no campo da afetividade e da sexualidade que o racismo “consegue mais vitórias sobre os negros. A baixa auto-estima e os complexos conseguem o efeito mais simples, e o mais aterrador: nos afasta. Em praça pública ou na TV, brancos se beijando é romantismo, pretos se beijando é discaração. Não fazemos amor, mas sexo – e só; nascemos pra isso. Havia e ainda há um medo, uma dúvida, uma ordem que nos trava gestos públicos de carinho.”
 
A presença do casal negro permite a conclusão de que a frase “beije sua preta em praça pública” é direcionada ao homem negro, numa explícita alusão à defesa da mulher negra, o que fica evidenciado no enunciado e é reforçado pelas palavras do próprio poeta:
 
“O “Beije sua preta em praça pública” poderia até servir de uma campanha lésbica, mas na época eu pensava muito em nós, homens negros…via os homens negros, sob aspectos como este, um aliado importante do racismo. Ele pode mais numa sociedade machista, não é? (…) Por outro lado tinha uma coisa de comunicar a minha felicidade e prazer de fazer cafuné num pixaim, e de beijar uma boca (negra), e de tornar tais gestos uma arma contra o preconceito.”
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Um dia ela contou a história de um rei, muito rico e muito bondoso. Ele tinha várias mulheres e vários filhos, mas também tinha preferência pela filha mais velha, que queria ver coroada rainha, quando ele morresse. Os súditos também a amavam e a queriam como rainha, e ficaram todos desesperados quando ela foi raptada por guerreiros de um reino vizinho. O rei decidiu que iria atrás dela e que, na volta, dividiria seu reino com todos os que fossem com ele, ajudá-lo na recaptura. Muitos se prontificaram a ir, mas não quiseram parte alguma do reino: queriam que ele fosse inteirinho da futura rainha.
 
No meio do caminho, todos foram capturados também, levados para um reino costeiro e enviados para homens que moravam no fim do mar. O rei não se desesperou, porque achou que teriam o mesmo destino da princesa e que, no final da viagem, todos se reencontrariam. Foram colocados num navio com mais um monte de gente, e só aí entenderam o que ia acontecer com eles. O rei então chamou todo mundo e falou que eles não podiam deixar aquilo acontecer. Os súditos se assustaram: “Mas e a princesa? A gente tem que trazer ela de volta!”. O rei pensou, pensou, pensou e falou que não, que do outro lado do mar todos reconheceriam nela uma verdadeira princesa, e a amariam do mesmo jeito que eles a amavam, e cuidariam dela, e fariam com ela voltasse pra casa. Ou lhe dariam, por lá mesmo, um reino e uma coroa. E assim fizeram: brigaram, tomaram o navio e voltaram pra casa.
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Escola de Pastor à Distância (sic) Online com qualidade e Reconhecimento?

Os pastores participam do Seminário Internacional de Teologia e atuam no comercial da Escola de Pastor. Os textos correm na tela: Curso de Oração e Intercessão – Curso de Conferencista Internacional – Ligue Gratis! – Central de Atendimento 0800 942 3153 – ou Acesse http://escoladepastor.com.br -  Aproveite nossa PROMOÇÃO de aniversário com 50% de DESCONTO nos Cursos  – Curso de Evangelismo – Curso de Pastor com Ordenação e Credencial, enquanto o pastor 1 intercala falas ininteligíveis com outras como: “porque sou teu Deus”, “e se esconde embaixo das minhas asas”, “e eu te digo aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaii de quem tocar em ti”, “as pedras que podem tacar em ti, eu te digo, eu as recolho antes que te acertem” “eu faço em ti um novo acordo” e canta, e parece cada vez mais em transe. Até que deixa no meio do palco o pastor 2, que até então segurava o microfone para ele, abre os braços e sai girando, girando, girando, girando,  girando, girando, girando, girando… O pastor 1 volta ao meio do palco e abraça o pastor 2, antes de se sentar, tonto por causa dos giros. O pastor 2 pega o microfone e grita: “SAI DA FRENTE, SATANÁÁÁÁÁÁÁS!”, para delírio do enorme público, que vibra ainda mais quando o ouve professar mais palavras ininteligíveis e arrematar, aos berros: “EU PROFETIZO A FALÊNCIA DO REINO DAS TREVAS! PROFETIZO O SEPULTAMENTO DOS PAIS DE SANTO! PROFETIZO O FECHAMENTO DE TERREIROS DE MACUMBA! PROFETIZO A GLÓRIA DO SENHOR ETEEEEEEERNO!”
 
O pastor 1 tenho a felicidade de não saber quem é. O pastor 2, na qualidade de deputado, hoje preside a Comissão dos Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.
É ver pra crer.
 
No próprio site da Comissão, à direita, há um link para denúncias de crimes contra Direitos Humanos na internet. Está lá, sob Intolerância Religiosa: “Material escrito, imagens ou qualquer outro tipo de representação de idéias ou teorias que promovam e/ou incitem o ódio, a discriminação ou violência contra qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos, baseado na raça, cor, religião, descendência ou origem étnica ou nacional.”
Será que vale a pena denunciar?
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A Vó morreu pouco tempo depois de contar essa história. O povo comentou que era inveja da Morte, que não queria no mundo gente mais esperta que ela. Mexendo nos papéis da Vó, descobrimos que ela tinha nascido em 12 de maio de 1888, e que o nome dela era Liberdade Maria de Jesus. A gente entendeu então que a Vó era uma profecia. Que ainda não se realizou.
A gente guardou a coroa, enrolada num plástico, pra durar mais, e bota ela no meio de uma roda e faz peguntas que não deu tempo fazer pra Vó:
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A mineira Ana Maria Gonçalves foi para a Ilha de Itaparica escrever seu romance, Ao lado e à margem do que sentes por mim. O livro, escrito durante seis meses, foi publicado de forma independente. Já em parceria com a Editora Record publicou o aclamado Um defeito de cor, inspirado em Luiza Mahin, mãe de Luiz Gama.

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