Cidinha da Silva: uma ativista da crítica de mídia


Por Marcos Fabrício Lopes da Silva em 25/11/2014 na edição nº 826 / Observatório da Imprensa


Nos livros Cada tridente em seu lugar (2007) e Racismo no Brasil e afetos correlatos (2013), Cidinha da Silva tece críticas importantes a respeito do fazer midiático. A escritora dedica um conjunto especial de crônicas a discutir a democratização dos meios de comunicação, a qualidade de conteúdo realizado pelos agentes de difusão e a virtude ética necessária para alcançar consistência e pluralidade na mídia. É possível encontrar nas argumentações de Cidinha da Silva o desejo legítimo por uma formação informativa e opinativa que, de fato, viabilize o encontro da clareza do jornalismo com a densidade e a complexidade da cultura, incluindo, nessa relação, a indústria do entretenimento e sua responsabilidade direta pela diversão pública, em termos recreativos e educativos.
Na crônica “TV a gato”, integrante do livro Cada tridente em seu lugar, Cidinha da Silva alerta para a censura econômica que impede o acesso ampliado aos conteúdos produzidos pelos canais fechados: “Você sabe que às vezes o pessoal da favela faz gato não é só pela falta, mas também pela revolta.” A autora observa a falta de preocupação das empresas de comunicação do ramo em atender a população residente em favelas, cuja linha de interesse também passa pelo consumo de informações e opiniões transmitidas pela TV por assinatura. Outro ponto a ser discutido referente à mencionada questão refere-se aos preços abusivos cobrados pelas empresas de comunicação, dificultando a vida do público para adquirir um pacote de canais fechados. Trata-se, nesse sentido, de atitudes discriminatórias, em matéria de atendimento ao consumidor e, principalmente, de preservação à cidadania no tocante ao direito fundamental da informação. Em oposição ao quadro de desigualdade informacional, a comunidade residente em favelas apela para a TV a gato, fazendo gambiarras para, enfim, obter uma programação mais alternativa, considerando o convencionalismo predominante nos conteúdos transmitidos pela TV aberta. A respeito dos temas aqui arrolados, Cidinha da Silva assim se posiciona:
“Gato de TV a cabo você deve achar que é luxo, pois talvez nem você tenha (TV a cabo ou um gato de TV a cabo) em sua residência. Mas, veja bem: assim como um vivente tem direito à água potável, tem também direito à programação televisiva de qualidade. Para obtê-la, no Brasil, é preciso pagar uma assinatura. Suponhamos que você possa pagar. Ocorre que a empresa prestadora do serviço acha que o lugar onde você mora não é digno dele. E você, além de perguntar-se onde mora a lógica capitalista da empresa, faz o quê? Os meninos fazem gato. E quer saber do que mais, quem gosta de miséria é intelectual, já disse o Joãozinho Trinta.”
A “síndrome da novidade”
A escritora destaca a referida atitude – a TV a gato – como expressão de uma luta dos mais desassistidos pelo acesso à comunicação midiática de qualidade. O público residente em favela também tem interesse em adquirir o patrimônio imaterial da cultura comunicacional, principalmente o de matriz transformadora, capaz de promover e estimular, lúcida e ludicamente, o esclarecimento popular. Afinal de contas, como já alertava o grupo Titãs na canção “Comida” (1987): “Bebida é água!/ Comida é pasto!/ Você tem sede de quê?/ Você tem fome de quê?/ A gente não quer só comida/ A gente quer comida/ Diversão e arte/ A gente não quer só comida/ A gente quer saída/Para qualquer parte”.
Como pano de fundo, encontra-se na citada crônica de Cidinha da Silva a busca de dispositivos sociais arrojados para se opor à clientelização do cidadão, fenômeno este que também se faz presente na oferta seletiva de difusão midiática. Nesse sentido, o restrito acesso à programação veiculada pela TV a cabo afronta o texto constitucional em seu artigo 220: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição.” A censura econômica se coloca como impeditivo para a livre comunicação. Estar fora da TV por assinatura é ficar excluído dos principais fluxos de informação. Desconhecer os conhecimentos divulgados naquela modalidade de comunicação informacional é amargar uma nova ignorância.
A crítica da mídia desenvolvida por Cidinha da Silva também se manifesta argutamente em Racismo no Brasil e afetos correlatos. Por exemplo, na crônica “Thatcher x Cher”, a escritora apresenta fatores nocivos que corroem o jornalismo ético de qualidade: o imediatismo e a falta de historicidade. Sobre o primeiro item, a opinião da autora apresenta um saber de síntese ímpar: “Tempos sombrios de velocidade da informação desacompanhada da qualidade de compreensão.” A respeito do segundo quesito, Cidinha critica a alienação social oriunda, dentre outros fatores, da cobertura superficial da mídia: “Os jovens, também como resultado do culto à história dos grandes e vencedores, têm cada vez mais dificuldade para conectar o presente em que vivem a fatos da história recente.” Estes apontamentos dialogam diretamente com as advertências reflexivas feitas pelo poeta Gustavo de Castro, em Os ossos da luz (2007), e pelo filósofo Walter Benjamin, em Experiência e pobreza (1933).
Castro, incrivelmente sucinto, salienta, no poema “Mídia”, que “a prensa é inimiga da perfeição”. Parodiando o dito popular, o poeta aproxima pressa à prensa, no sentido de repercutir o alerta de que os parâmetros informativos e opinativos da mídia perigosamente se respaldam pela agilidade voraz, prejudicando argumentações mais profundas e dialéticas para favorecer apontamentos mais generalizados, preconceituosos e vazios. Bússola da opinião pública, a imprensa vem se distanciando cada vez mais deste papel social, ao promover, por conta da síndrome da novidade, o vulgar, rejeitando, assim, o importante. A respeito, Benjamin lamentava com pesar: “Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-la muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a miúda do ‘atual’.”
“Os privilégios da branquitude”
A promoção de celebridades vazias exemplifica o afã midiático de promover modismos como se fossem verdadeiros feitos. Com desconfiança sábia, Cidinha da Silva demonstra como a imprensa não economiza espaço para promover nulidades. A escritora, na crônica “Os mortos”, foi direto ao ponto: “Celebridade não é pessoa, é espetáculo ambulante, e quando bom e eficaz, eterniza-se em business.” Como produtos do jornalismo de intimidade, as celebridades se comportam como medalhões sociais, representando a exibição da vida cotidiana, da esfera privada e de assuntos sem relevância pública. Para explicar a origem do termo “celebridade”, o historiador americano Daniel Boorstin, autor do livro The image: a guide to pseudo-events in America (1962), relaciona o conceito, surgido entre os séculos 18 e 19, com a modernidade. Antes desse momento, não se falava em “celebridades”, mas em ídolos, famosos e heróis, que recebiam essa designação por seus feitos. Se os heróis tinham mérito por terem realizado um grande feito, a celebridade, muitas vezes, possuía apenas certa fotogenia que lhe garantia a visibilidade, mesmo com o mérito e a relevância política esvaziados. Portanto, as celebridades protagonizam o suprassumo midiático do mundo narcísico das imagens: a publicidade do eu, a autopromoção ou – usando uma terminologia afeita aos modismos atuais – o marketing pessoal.
Preocupados demasiadamente em manejar as estratégias que lhes conduzirão aos píncaros do prestígio e do reconhecimento social, as celebridades devem fazer de tudo para agradar, amoldando-se aos meandros da festa de máscaras que anima o salão da cordialidade e da simpatia. Eis “o preço da admiração”, termo que também intitula uma das mais divertidas crônicas de Cidinha da Silva acerca do assunto: “Nos tempos supermodernos aplicam-se os pressupostos celebrativos a qualquer pessoa que tenha o mínimo de visibilidade e ela é esvaziada da condição humana para transformar-se em alguém que atende às vontades do público soberano.” Mais vale “ser percebido” do que “perceber” – eis a linha de conduta daqueles que sofrem com a “sede de nomeada”, conforme ressaltava Machado de Assis, no alto de sua inteligente ironia expressa em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881).
Além de criticar o mercado midiático das celebridades, Cidinha da Silva, em “A PEC das Domésticas, os grilhões e as madames”, parte para o enfrentamento inteligente dirigido à cobertura tendenciosa da mídia que, majoritariamente, defendeu os interesses patrimonialistas dos setores mais abastados, mesmo diante da legítima causa referente ao reconhecimento formal dos direitos trabalhistas das domésticas. Postura conservadora e racista que, infelizmente, reverbera o engodo da mentalidade escravocrata ainda vigente. Com a palavra, a escritora:
“São 77 anos de organização sindical das trabalhadoras domésticas, iniciada por Laudelina de Campos Mello, em Santos, na busca de 34 direitos garantidos à maioria das demais categorias de trabalhadores. São 70 anos de atraso em relação às conquistas da CLT. São cerca de 8 milhões de domésticas em todo o país, incluindo adolescentes e crianças; destas, em torno de 6 milhões não têm carteira assinada e não ganham sequer um salário mínimo.
Entretanto, mesmo diante desses números, os jornais estão consternados com o ‘desamparo’ das patroas e patrões, e se apressam em esmiuçar todos os direitos da classe patronal frente aos insuspeitos novos direitos como trabalhadoras (ironia da História) conquistados pelas domésticas. Qualquer semelhança aos debates prévios à extinção formal da escravatura não são mera coincidência.
[...]
O giro da roda num país racista sempre emperra nos privilégios da branquitude. A bola da vez é o trabalho doméstico que passa a ter direitos similares aos dos demais trabalhadores apenas no século 21, e são ainda questionados. Eita, pessoal ranheta, não larga o osso nem a poder de marreta!”
“Nem Coca, nem Fanta, uma garapa, por favor”
Há que se destacar também, no exímio empenho de Cidinha da Silva como crítica da mídia, suas reflexões sobre a indústria comunicacional do entretenimento e sua atuação direta no oferecimento da diversão pública, tanto em termos educativos como em termos recreativos. Entre os novelos e as novelas que marcam as páginas da vida, a escritora mostra as máscaras nas linhas e a verdade entre as linhas confeccionadas pela teledramaturgia brasileira. Por exemplo, foi reforçado em uma novela global de grande sucesso o estereótipo dirigido à população em favelas. A respeito, Cidinha da Silva, na crônica “A favela em Salve Jorge“, salienta:
“A autora de Salve Jorge está esculachando a favela. Poxa, é uma moçada jovem que não trabalha, não estuda e só tem quatro ou cinco tipos de ações: batem perna, batem boca e gritam, postam coisas na internet, tomam sol na laje e dançam, do funk ao pagode. De quebra, fecham com o pessoal do movimento e planejam subir na vida arrumando marido rico.”
Em contrapartida, na opinião de Cidinha da Silva, Lado a lado foi um marco novelístico para o reconhecimento dos feitos da comunidade negra no Brasil. O casal Zé Maria e Isabel, interpretados, respectivamente, por Lázaro Ramos e Camila Pitanga, ofereceu inúmeros exemplos de inteligência, sensibilidade, beleza, ética, solidariedade, coragem, trabalho, perspicácia e empreendedorismo. Ao analisar os capítulos de Gabriela, Cidinha da Silva chama a atenção para a interpretação de Juliana Paes, que confere complexidade à protagonista do romance de Jorge Amado. Além disso, a escritora destaca, ainda, a desconstrução do machismo de plantão que impõe um padrão simplório aos afetos: “Houve quem reclamasse de que o turco comia Gabriela com os olhos, ao invés de comê-la como se devia. Tolinhos! Nacib não é bobo e come Gabriela como ela gosta, não como a testosterona imbecilizada prescreve.”
No tratamento crítico do programa global Esquenta, Cidinha da Silva saboreia os leitores com uma formulação conceitual bastante perspicaz: trata-se do “sociologuês”. O sociologuês “é a mudança conservadora, a transformação pelo alto, velha conhecida”. Em outras palavras, partindo do melhor que há em nossa fortuna metafórica de cunho popular, “é o ponto de mutação em que a Coca se revela Fanta”. Conforme o parecer lúcido de Cidinha da Silva, “a diversidade torta”, apresentada no programa de Regina Casé, revela “a miscigenação subordinada, a mistura, nome popular e contemporâneo que até hoje não conseguiu provar sua efetividade para os pretos, tampouco diminui os privilégios dos brancos”. A escritora, com bom humor, aproveita a oportunidade para fazer um pedido ao garçom: “Nem Coca, nem Fanta, uma garapa, por favor.” Uma garapa: bem mais saborosa do que “uma boa média”.
A apuração ética
Encontra-se presente, na crônica “Preconceito racial, discriminação e racismo, distinções de letramento”, um dos grandes problemas que prejudicam as práticas de entretenimento em matéria de expressão de alteridade voltada para a promoção da diversidade: “O que mais me desagrada é a forma como a expressão preconceito (sequer é o preconceito racial) tem dissimulado a força da discriminação e do racismo ao longo da trama. Meus amigos dizem que é por ação de Ali Kamel, orientação global. Tenho dúvidas, a mim parece mais a ausência de letramento racial.” Pior: parece-nos que ambos os fatos, midiaticamente falando, estão terrivelmente combinados.
Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo, é autor do livro Não somos racistas (2006), cujo subtítulo aponta bem qual é o objetivo geral da obra: “Uma reação aos que querem nos transformar numa nação bipolar”. O escritor defende a ideia de que compomos uma nação predominantemente mestiça e que o racismo existe como manifestação minoritária e não institucional, sendo a pobreza o principal problema do país. Pretende criticar as reivindicações do movimento negro e os projetos de adoção de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras. Trata-se, a nosso ver, de um remendo neogilbertofreiriano voltado para o elogio à mestiçagem brasileira, tese que possui caráter ideológico, ao tentar esconder o racismo existente no país e a exclusão do negro ao longo dos cinco séculos de formação do Brasil. Tal posicionamento contribui decisivamente para “a ausência de letramento racial”, conforme bem notou Cidinha da Silva. Visando à superação desse problema, a escritora, à luz de importante questão racial e étnica, nos ajuda a compreender como se comportam o preconceito e a discriminação racial:
“O preconceito e a discriminação racial são parte de um todo chamado racismo, um sistema ideológico espraiado e arraigado em instituições e corações, que esvazia da humanidade seus alvos, os serviliza e constrói privilégios para aqueles que exercem o poder. O preconceito racial, então, diferente de outros tipos de preconceito, motivados hipoteticamente pelo desconhecimento, está a serviço da manutenção de um sistema de poder, de exploração que, no Brasil, tem cristalizado o lugar de mando dos brancos em detrimento dos negros. A discriminação racial, por sua vez, é o braço ativo do racismo, é o que define a eficácia de seu modus operandi.”
Destacamos e comentamos, então, neste artigo, as principais críticas de Cidinha da Silva compromissadas com a apuração ética dos meios de comunicação. A qualidade argumentativa presente nos mencionados textos da escritora colocam Cidinha da Silva como notável pensadora da mídia, em termos críticos.
Obras consultadas
Cada tridente em seu lugar. 3ªed.rev. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010.
Racismo no Brasil e afetos correlatos. Porto Alegre: Conversê Edições, 2013.

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