Não vai ter mamão com açúcar, neném!




Por Cidinha da Silva

O mundo real não nos permite dizer que o racismo esteja com os dias contados, mas a coisa está ficando preta. Embora menos preta do que o necessário, a reação e a resistência estão mais complexas, fortes e ágeis. Brotam como Poejo e Língua de vaca. De todos os cantos.

O episódio mais recente desassossegou a cronista. Não porque seja algo original, inusitado ou mais grave do que o resto, mas porque acontece diariamente, a toda hora, todo minuto. E o caminho que ela fazia tranquila, descalça no frugal da vida, passou a exigir botas e ferramentas para mover-se em solo lamacento, outra vez.

De que falamos entre tantos episódios diários na novela da discriminação racial que se desdobra em torno da vida dos negros no Brasil? Do Caso Netflix Boutique Filmes x +Add Casting no recrutamento de um ator negro para a primeira série brasileira da Netflix.

Entenda o capítulo: A agência +Add Casting, doravante denominada recrutadora, era responsável por conseguir atores no perfil solicitado pela Boutique Filmes. Esta, por sua vez, deve ter atendido a uma exigência da Netflix de ter um ator negro no elenco principal. A empresa estadunidense que atende a mais de 50 milhões de expectadores de TV via Internet, em dezenas de países, obedece a uma política de diversidade séria. Logo, não bastava ter João Miguel no elenco, excelente ator que preserva o sotaque nordestino nos papeis nacionais que desempenha. Era preciso que sua primeira série de ficção brasileira representasse, ainda que de forma tímida, 53% da população do país.

Pois bem, a recrutadora enviou uma mensagem eletrônica a grupos de atrizes e atores negros e outras associações próximas ao perfil de ator desejado pela Boutique Filmes, com a singela conclamação: “precisamos de um ator jovem, na faixa dos 20-25 anos, muito bonito. A direção gostaria que ele fosse negro, então o ideal seria ter um ator negro e muito bonito, mas conscientes do grau de dificuldade, faremos teste também com os bons atores, lindos, que não sejam negros.” Ai, tão doce.

Deu ruim! O pessoal que recebeu o e-mail, ao invés de se sentir grato, feliz e lisonjeado pela possibilidade de ter um dos seus, escolhido para papel nobre no programa, reagiu ao racismo escancarado na convocatória e colocou a boca no trombone. Vida de gente negra nas artes cênicas não é mole, não, viu? Quando não é blackface explícito é blackface pressuposto, porque os negros, a não ser que se curvem, nunca atenderão mesmo às exigências racistas.

O bloco dos insurgentes tomou as avenidas da Web e sambou na cara das empresas envolvidas. A Netflix, assustada, porque está submetida a uma política de diversidade, na qual posturas racistas geram danos à imagem da empresa e punições, cobrou responsabilidades da produtora. Afinal, sua primeira série brasileira não poderia nascer morta ou maculada pelo racismo à moda local. A produtora se eximiu de responsabilidades e as jogou para a recrutadora. O caso tramita nos tribunais do cyberespaço.

O bloco dos insurgentes, livre e leve evolui na avenida e canta seguro o refrão: Acabou o amor, baby! Isso aqui já virou Palmares!

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