Na Rede (12)


Por Cidinha da Silva
Interessante perceber os campos políticos, éticos e artísticos em disputa na crítica e no suposto apoio crítico ao videoclipe “Luxo só”, de Flávio Abreu (Renegado). São elementos muito ricos para pensar a performance negra, sua constituição, recepção pelo público e pela crítica; a crítica (possível e aceitável), a liberdade (ou não) de manipulação de signos; o direito (sic) de reiterar estereótipos e estigmas por ser uma performance negra e, por conseguinte, o dever (sic) da crítica negra de não criticá-la.
Sem pretensões de aprofundamento, apenas como contribuição ao debate sobre performance negra, vejamos alguns desses elementos:
1 – Um trabalho de arte quando sai à rua está exposto à crítica. Estamos preparados para a desconstrução de nossa suposta ousadia? Ou vamos fazer carão e evocar os de dentro do samba para criticarem o samba? Os de dentro do Rap para criticarem o Rap?
2 – Esperamos que a crítica negra seja conivente com trabalhos eventualmente ruins porque a crítica branca é, no mínimo, desdenhosa com o que produzimos? Deveríamos produzir essa compensação, porque a prática contrária (a crítica fundamentada) nos jogaria no limbo de não sermos tão irmãos quanto dizíamos que éramos?
3 – Para o bem e para o mal misturamos a luta política e o trabalho de arte e podemos até requerer paternalismo quando não conseguimos assumir que erramos na escolha estética em nome da ética do capital e de todos os seus símbolos de opressão, ostentação e reiteração do que está convencionado, a despeito de utilizarmos alguns sujeitos e seu famoso “lugar de fala” para legitimar o mais do mesmo como algo inovador, simplesmente porque fomos nós a fazê-lo.
4 – O fato de o público negro brasileiro não sustentar economicamente ao artista negro, eventualmente criticado, conferiria a este, prerrogativas para ser machista, para hipersexualizar o corpo de mulheres negras, para reafirmar o lugar do macho-preto-comedor, como estratégia de alcance do público amplo que consome arte negra que estereotipe as pessoas negras? Se o artista age assim, se vende a arte negra na qual o negro é apresentado como aquilo que sempre foi aos olhos da estereotipia racista, o público negro seria obrigado a se calar diante de trabalhos que merecem ser criticados porque não foi capaz, porque não se dispôs a dar suporte econômico ao artista negro em tela e ao artista negro de um modo geral?
5 – Parece existir um frisson identitário (expressão emprestada do escritor Davi Nunes), neste caso, frisson identitário de gênero, que aciona a sirene de segurança do Clube do Bolinha todas as vezes que uma leitura feminista do mundo e dos clichês que asseguram lugares de poder para os homens (macho-preto-comedor no clipe) e de acomodação das mulheres negras ao lugar de peças de carne em exposição no mercado (dos videoclipes, no caso). A rapaziada fica indômita e se defende em bloco. Afinal, as manas “enchem o saco demais”.
6 – O Rap é muito importante, muitíssimo importante como elemento transformador, diria até revolucionário no que tange à impulsão do amor próprio negro (de homens e mulheres), na releitura espacial do mundo, das quebradas, da relação periferia-centro, além de ser fundamental em diversos outros aspectos que não couberam na frase anterior. O Rap tem formado gerações e gerações desde sua chegada ao Brasil (1985, de acordo com a data utilizada por Mano Brow). Entretanto, é inconteste também que o machismo no Rap é tão arraigado que parece intrínseco e, década após década, muda mais pela entrada de novos sujeitos e novos corpos (mulheres e pessoas LGBT) do que pela transformação, revisão crítica dos artífices de sempre, os homens cis.
7 – Em contraponto à manutenção dos clichês machistas feita pelos homens (só para mostrar que a crítica dirige-se a mulheres negras que o fazem também) na Copa de 2014, quando em meio ao debate sobre os atores Camila Pitanga e Lázaro Ramos terem sido preteridos da função de apresentadores do sorteio dos grupos da Copa por serem negros, em favor de outro casal de artistas brancos, uma atriz negra, Sheron Menezzes, nos surpreendeu ao apresentar-se como “pregoeira” de bundas e pernas negras naturais (hiper malhadas) ou siliconadas na televisão (concurso da Globeleza, se a memória não falha). Tratava-se de Glúteos, vasto lateral, bíceps da coxa, trato iliotibial. Acém. Cupim. Músculo. Coxão-duro. Paleta. E não sabíamos que parte da imagem era mais triste e deprimente, a carne de segunda e seu corte de costas ou o Filé-mignon disfarçado, maquiado, bem-vestido, de sorriso angelical e dengoso a serviço do leilão de mulheres negras no mercado de corpos.
8 – Por fim, o clipe como peça de arte, extrapola ou deveria extrapolar os clichês internáuticos: “representa / não representa” e “lugar de fala”, por exemplo. Representatividade é maior do que representação pessoal, ou mesmo coletiva, conferida pelo sujeito X ou Y. Seria possível discutir a representatividade do clipe no campo da performance negra? Temos ou criaremos epistemologia para isso? O “lugar de fala” (como apropriado pela internet) e a “escrevivência” precisam ir além da legitimidade para dizer umas tantas coisas. Ou seja, a legitimidade não é a pedra de toque que transforma texto em poema ou um amontoado de textos em livro, para sair do campo do audiovisual, só porque escritos por pessoas negras.
9 – Essas idéias rápidas não são para “tretar” (falta-me tempo e disposição juvenil para isso), mas, para fomentar o debate sobre performance negra a partir do clipe “Luxo só”, de Flávio Abreu (Renegado).

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