"Cinderelas, lobos e um príncipe encantado" - um filme crítico e sensível sobre o turismo sexual no Brasil
Num dia deste setembro, estranhamente invernal, fui à zona portuária do Rio, a convite do amigo Joel Zito Araújo, comentar o filme “Cinderelas, lobos e um príncipe encantado”, seu último documentário, lançado no Festival Internacional de Cinema do Rio.
Foi muito significativo abordar o tema do turismo sexual numa bela casa de cinema, localizada na Gamboa, onde escavações acidentais encontram ossos de negros, às dezenas. Lembremos que no Brasil, até pouco antes do advento da República, só os católicos, batizados, tinham direito a enterro em cemitérios públicos. As negras e negros mortos, não-católicos, tinham seus corpos jogados fora, literalmente, ou, enterrados em cemitérios clandestinos, como os existentes ali, na Gamboa. Por isso foram criadas muitas das irmandades de pretos, para enterrar o povo negro escravizado e egresso da escravidão, que não tinha como prover um sepultamento digno para si. Este, pagava dízimo às irmandades, e assim, ao longo da vida, o povo negro comprava o direito de morrer com dignidade ou, pelo menos, de ser enterrado como gente.
É significativo porque “Cinderelas, lobos e um príncipe encantado” fala de pessoas mortas-vivas, de meninas “rachadas ao meio por dois reais”, como alertou um taxista indignado com a exploração sexual de crianças, de gente que perde a alma e segue vivendo. Esta é a minha leitura do filme, a obra é aberta e possibilita inúmeras outras.
Percebi no Joel entrevistador, o rigor do pesquisador acadêmico, ou seja, aquele que mesmo interagindo e, seguramente, discordando de várias atitudes e posicionamentos, mantém os silêncios necessários para que o entrevistado se solte e revele aquilo que nos choca, nos estarrece, pois nos coloca dentro da boca do jacaré, do gringo “100% jacaré”, ou do cabeleireiro-lobo, em pele de cordeiro. Todo cuidado é pouco com as fotografias ingênuas tiradas com e por gente desconhecida, o monstrengo-jacaré, por exemplo, usa fotografias tiradas ao lado de gente séria, do mundo da arte, principalmente, para comprovar qualidade e idoneidade de suas amizades no Brasil. Entretanto, o silêncio do pesquisador não significa neutralidade. O autor-diretor se posiciona ao incentivar, pela anuência silenciosa, que os jacarés sintam-se à vontade e arreganhem os dentes. Em outros momentos faz uso de ironia fina, em comentários sutis, quase imperceptíveis. Cabe à assistência, além de cuidar da própria defesa, o engajamento nas políticas públicas para proteger, no mínimo, às crianças e aos adolescentes da exploração sexual. Há o exemplo irado do motorista de táxi, cuja região de trabalho é zona de prostituição infantil. Ele revela coisas que os juizes reacionários, Oxalá não se configurem também como abusadores de crianças e adolescentes, consideram “normais”, ou seja, as estratégias de sedução praticadas por crianças que, na opinião deles, comportam-se como "mulherzinhas, mulheres em miniatura", justificando a absolvição de homens adultos que as exploram sexualmente.
São muitos os pontos importantes do filme e não tenho a intenção de abarcá-los, apenas gostaria de destacar dois: o complexo mosaico racial e de exercícios eróticos e afetivos apresentado e o nó górdio do racismo e dos estereótipos internalizados pelas pessoas que são alvo do racismo.
Para colocar mais pimenta no molho da complexidade, trago um comentário feito no meu blogue à guisa da reprodução do artigo crítico de Carlos Alberto Mattos sobre o Cinderelas, publicado em outro sítio. O texto é de Samya, uma garota que conheci em Paris, no verão de 2006. Diz ela:
(...) “Tua critica (refere-se ao texto de Carlos Mattos) me fez lembrar um episodio que me chocou profundamente quando estava na Itália. Eu morava na casa da família do Eric, um marfinês que conheci no Brasil e que se tornou minha família. Pois então, morávamos em Roma e um dia estava na casa de uma amiga brasileira e estávamos jantando amigavelmente entre mulheres, logo depois da janta disse que eu tinha que sair, pois iria me encontrar com o Eric e com os primos dele. Uma das brasileiras presentes decidiu me dar uns conselhos, me disse que eu "não precisa disso", não precisava continuar saindo com esses pretos pois além de branca eu nem era feia e poderia, tranqüilamente, arrumar um italiano, um homem branco, pois saindo com esses pretos eu perderia completamente o valor (leia-se valor de mercado). Eu me senti profundamente insultada, como mulher e como ser humano. Então o meu valor se media pela cor do homem que estava ao meu lado? E na Europa eu tinha finalmente a possibilidade de ser alguém, de ter um marido branco.
Essa é só uma das muitas histórias de racismo, de negação e de profundo complexo de inferioridade que vivi e continuo vivendo nos meus anos por aqui, como a história da brasileira que saiu da um ótimo apartamento na periferia de Paris para morar num quartinho de 9m2 no centro, onde ela podia finalmente se livrar desses vizinhos estrangeiros que nada mais eram que franceses, que por pecado carregavam um nome árabe ou africano. Desculpe aí o desabafo, mas às vezes preciso exorcizar um pouco” (...)
Samya remete-nos ao filme, ao depoimento do italiano branco, cujo bordão é “toda brasileira é considerada puta na Itália”, mesmo num jantar entre amigas brasileiras, ao que parece. Afinal, como declarou Márcia, a dançarina, aparentemente bem-sucedida em Berlim, toda brasileira (leia-se migrante) faz o que é preciso, se vira como pode na hora da necessidade. O entrevistado vem ao Brasil fazer sexo com as mulheres brasileiras, mas é crítico e contrário ao turismo sexual. Ao turismo exagerado, pelo menos. Acha que o Estado deve intervir para moralizar a coisa, mas quer manter seu sexozinho básico, quem sabe, feito até com crianças e adolescentes?
As uniões de sucesso entre brasileiras negras e alemães brancos, quer sejam os casamentos estáveis, vividos na Alemanha, quer sejam as uniões fugazes em terras brasileiras, enquanto dure o visto de turista e as sucessivas renovações, levam-nos a pensar nos diferentes tipos de expectativa e concepção de casamento por parte de mulheres e homens envolvidos. Os homens são unânimes em declarar que as mulheres escolhidas são menos severas, mais doces, carinhosas e permissivas do que aquelas (européias) que talvez os tenham rejeitado, ou com as quais eles não tenham desejado se relacionar. As mulheres, por sua vez, destacam, direta ou indiretamente, o conforto material oferecido por aqueles homens. Mas, ao cabo, são cinderelas que encontraram seus príncipes encantados e o filme, corretamente, se abstém de julgá-las.
Para comentar o segundo ponto, parto do discurso extremamente racializado e aparentemente inofensivo do cabeleireiro (branco) cearense e da travesti (socialmente branca) sobre a preferência dos gringos pelas “neguinhas”. O cabeleireiro destila aquilo que o brasileiro branco médio, heterossexual ou gay, pensa sobre as mulheres negras. O entrevistador se mantém em silêncio, constrangido e cúmplice, mas seu silêncio diz tanto, chega a doer. O resultado é revelador, não foi preciso perguntar nada, o cabeleireiro abre o coração ressentido. Ele diz mais ou menos assim: “nem eu (que sou branco e tenho cabelo liso) consigo ir pra Europa com um bofe desses e, essas neguinhas, do cabelo bem pixaim, conseguem. E ainda vêm aqui, no meu salão, esnobar, me esnobar. Vêm alisar o cabelo pixaim e me apressam (a mim, que sou branco) porque o avião já está quase saindo para a Europa”. Depois tenta aliviar o veneno com o ineficaz antídoto de declarar-se sem preconceitos, além de admirador da cultura e das divas negras, na verdade, ele “só fala das coisas como elas realmente são”. Ora, ora, essa “neguinha” humilhada quer se vingar e diz, hipoteticamente: “você, branco, me humilha, me chama de neguinha do cabelo pixaim, mas é do meu sexo que os gringos gostam, eu sou a mais gostosa, a mais fogosa”. É por essas e outras que quando as ativistas negras tentam desconstruir o imaginário da negra sexualmente vulcânica, sempre aparece uma mulher negra comum que reclama porque com isso tiraríamos "a única coisa boa" que elas têm, ou seja, a ilusão de que são gostosas e vulcânicas, superiores em pelo menos uma instância da vida e isso as tornaria insuperavelmente desejáveis. Mas não nos iludamos, será que as negras são mesmo isso tudo e os gringos as procuram por este motivo ou porque elas topam tudo???? E topam porque não têm nada, porque todas as misérias sociais agravadas, escandalizadas e reverberadas pelo racismo, as depauperaram de tal forma, que as leva a aceitar qualquer coisa, qualquer gringo. Afinal, em muitos depoimentos, as mulheres contam que os gringos com os quais fazem programas no Brasil são pobretões na Europa, trabalhadores cujos salários em Euro não lhes permite comprar os bens e serviços que o Real lhes proporciona aqui. Essas mulheres brasileiras tão inferiorizadas e carentes dão um up grade na masculinidade combalida de boa parte dos turistas sexuais.
Pesquisas feitas com os michês baianos durante a década de 90, brancos e negros, mostram que os negros são mais procurados pelos gringos por dois motivos: fazem sexo inseguro sem reclamar e cobram mais barato. O mesmo vale para as prostitutas negras. Seriam estes michês e prostitutas negros mais requisitados por serem mesmo “quentes” ou por serem permissivos? Quem sabe, uma permissividade em brasa, como efeito indelével do racismo.
Por fim, o Joel corrigiu um desvio na minha rota interpretativa. Havia entendido, por conversas anteriores, que a força motriz do filme fora um olhar sobre o exercício da sexualidade transversalizado pelo racismo, nada disso. A motivação foi totalmente racial. Joel propôs-se a investigar os dados quantitativos, comprovadores de que 75% das mulheres envolvidas com o turismo sexual são afro-descendentes. O resultado contundente da pesquisa está em “Cinderelas, lobos e um príncipe encantado”, um documentário vital para iniciar as pessoas na complexidade humana, racial e econômica do tema.
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