Capão Redondo nas telonas de cinema
(Deu no Estadão, por: Flávia Guerra).
"RETA DE CHEGADA - Após quatro anos de trabalho, Jeferson De conseguiu terminar seu primeiro longa quatro dias antes da exibição na Alemanha; filme contou com colaboração de Ferréz e a bênção de Mano Brown
“Todo maloqueiro tem em si motivação para ser Adolf Hitler ou Gandhi”, canta o rapper E.M.I.C.I.D.A. enquanto o que se vê na tela é uma panorâmica do Capão Redondo, um dos bairros mais famosos e, ao mesmo tempo, esquecidos de São Paulo. “Dá para tirar este Hitler e botar um bip no lugar?”, pede Jeferson De. “Por quê?”, rebate o “supervisor” da trilha sonora João Marcelo Bôscoli. “Como o filme vai passar na Alemanha, acho que não vai pegar bem falar em Hitler”, responde De.
O filme em questão é Bróder, que faz sua première mundial hoje no Festival de Berlim. Primeiro longa do diretor, representa o Brasil na Panorama, uma das mais prestigiadas mostras competitivas do festival que termina sábado. Detalhe: o diálogo acima ocorreu há menos de uma semana. “Que estranho saber que meu filme vai ser exibido, que o festival já começou e eu ainda não terminei!”, comentou De ao Estado enquanto “apagava” o Hitler de sua história, em um estúdio da gravadora Trama em São Paulo. “Berlim vai mostrar o preto que voa e o preto que não voa, que usa bilhete único.” Assim De comentou a participação de outro filme do Brasil, Besouro (o “do preto que voa”, de Daniel Tikhomiroff), e do seu Bróder na mesma seção.
É de fato irônica e complementar a escolha dos dois filmes. Besouro conta a história de Besouro Mangangá, o capoeirista que desafiava as leis da gravidade e os senhores de engenho em um Brasil recém liberto da escravidão. “No Brasil de 1897, quase todos os negros ainda sem a plena consciência de sua cidadania” diz a história de Besouro. No Brasil de 2010, não se pode afirmar que essa consciência tenha evoluído muito. O negro de Bróder não voa, continua tendo de se desdobrar para conseguir sair das três “opções profissionais” para se incluir no mercado de trabalho: “Morador da perifa tem o direito de virar jogador de futebol ou bandido. Quem não “opta” por nenhuma dessas rala muito para pagar o aluguel no fim do mês”, sentencia De.
Se o “bróder” da perifa não voa, Jeferson De voou contra o tempo para terminar seu filme. Ele embarcou há dois dias para Berlim e Bróder, o filme, seguiu dois dias antes, no sábado, recém-saído da sala de montagem. De, que anda de ônibus, trabalhou quatro anos para encerrar Bróder com a canção de E.M.I.C.I D.A que vem a calhar: Triunfo.
O Estado acompanhou a última semana de trabalho e conferiu de perto o frio na barriga de um diretor estreante para botar seu filme na lata e na tela de um grande festival internacional. “Cheguei a parar por quase um ano e a pensar que nunca terminaria, mas a seleção para Berlim deu novo fôlego. Esse é um projeto com grande potencial comercial. Há uma imensa galera da perifa e fora dela que tem tudo para gostar.”
Orçado em R$ 3milhões, Bróder é uma produção da Barraco Forte (sua produtora) e da Glaz Enternaiment, e conta ainda com a Columbia e a Globo Filmes. “Queremos lançar tanto em grandes salas quanto nas comunidades.”
Bróder conta a história de três amigos de infância, Macu (a semelhança com Macunaíma não é coincidência), Jaiminho (Jonathan Haagensen) e Pibe (Sílvio Guindane). Jaiminho virou jogador de futebol. Pibe é corretor de imóveis. Macu (Caio Blat) foi seduzido pelo crime e “alugou” sua casa para uma gangue de traficantes que pretende sequestrar uma criança. Tudo vai bem até que a gangue decide sequestrar Jaiminho.
Mais que botar seu filme na fita, De conclui com Bróder um projeto que nasceu há 13 anos, quando criou o Dogma Feijoada (leia quadro). De dogmático, o Dogma não tem muito. A começar pela escolha do herói (ou quase) da história, que é, por si só, uma contradição. Macu é branco. Será? Quando De convidou Caio Blat para viver o personagem, ouviu: “Obrigado, eu sempre quis ser negro.”
Assim sendo, pode-se dizer que Berlim também vai mostrar o filme do branco que é negro. O diretor resolveu dar a um ator branco o papel de seu primeiro longa para, na verdade, questionar o que é ser negro e o que é ser branco em um país em que, como diz a canção, as riquezas são diferentes, mas miséria ainda é miséria em qualquer canto. Não é por acaso que Bróder é o primeiro longa a projetar o mítico Capão na tela. “Nenhum cineasta paulista cumpriu bem a tarefa de retratar a periferia paulistana. Está na hora dos diretores tirarem suas lentes da Vila Madalena e mirarem a perifa”, provoca De. E filmes como Antônia, Os 12 Trabalhos, Contra Todos, Linha de Passe? “Respeito meus colegas, mas nenhum conseguiu traduzir bairros complexos como o Capão.”
Seja como for, o fato é que Bróder traz finalmente um diretor negro à frente de um filme sobre essa fatia ainda tão mal entendida do Brasil. “É um projeto de dentro para fora. Não importa quem é negro ou branco. Importa quem é excluído. É uma história de irmandade, para pegar pela emoção e não um manifesto.”
Caio Blat diz que o mais importante foi conhecer as pessoas no Capão e ter a bênção para representá-las. “Conheci muitas histórias como a do Macu, muitas mães que perderam seus filhos. Mas o clima lá agora é de superação. Os dias de guerra dos anos 90 passaram, e, por incrível que pareça, o que pacificou o bairro não foram programas de governo. O que mais contribuiu foi a organização do crime, a unificação, acabando com as disputas entre gangues.”
Caio sabe do que fala. Para se preparar para viver Macu, mudou-se por conta própria para o Capão. “O Brasil é um país jovem e negro. Espero que se reconheça no filme.” Para diretor e ator, tão aguardada como a sessão em Berlim será a sessão no Capão “para a molecada ver o bairro dela no telão.” É nóis na fita, mano!"
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