Leia "UM HINO", crônica de "Oh, margem! Reinventa os rios!"

Dona Ernestina, funcionária dedicada, vê-se obrigada a telefonar aos ex-colegas comunicando a morte do patrão. “Morreu, foi?” Diz o ex-office-boy. “Como ele morreu, Dona Ernestina?” “Atropelado, meu filho. Na Av. Paraná, em frente ao Ministério do trabalho.” É provável que saísse de mais uma das incontáveis audiências de conciliação trabalhista, quando ele decretava falência da empresa para não pagar os direitos dos funcionários. Pensa o ex-office-boy. Este não vai ao velório. Não adianta. Outra vez ela pega o caderninho de notas, folheia, encontra o nome do Vilson, ex-faxineiro. Telefona, é recebida entusiasticamente pelo ex-colega, sempre muito simpático. “Morreu? Já foi tarde, heim, Dona Ernestina?” “Oh meu filho, não fale assim que Deus castiga.” “Castiga a quem, Dona Ernestina? Carcamano, filho da mãe. Acidente coisa nenhuma. Ele deve ter se matado, o covarde.” “Mas Vilson, por que tanta mágoa?” A pergunta morre sem resposta. O Vilson desliga o telefone, está de saída. Diz ter sido um prazer falar com ela. Não falta mais ninguém para avisar. Parece que só mesmo ela e a família irão ao velório. Dona Ernestina brinca com a manivela da caixa registradora, pensa no futuro. Sentirá falta da loja, mas felizmente não ficará desamparada, já tem idade para a aposentadoria. Faz planos com o dinheirinho do acerto. Vai pedir à filha do Seu Scliar que a demita para aumentar o montante. Só mais tarde ela saberá que o patrão nunca recolheu o fundo de garantia. Na rua passa um menino assoviando o hino do Galo – “vencer, vencer, vencer, esse é o nosso ideal”... ela sorri ao lembrar do Vilson, atleticano fanático. “Lutar, lutar, lutar, com toda a nossa raça pra vencer”... Recorda também o dia da crise hipertensiva do Seu Scliar. Ele socava as peças de tecido. Até jogou algumas no chão, apanhadas por ela e pelo Vilson para recolocar no lugar. Gritava para os funcionários: “Eu sou um fracassado! Não consegui nada na vida. Vou terminar a vida como meu avô. Uma lojinha de tecidos na Lagoinha e um funcionário preto-encardido vestindo uma camisa surrada do Atlético, entupindo meus ouvidos com o hino do time o dia inteiro.” O Vilson viu a ambulância chegar e levar o patrão para o João XXIII. Ficou calado o dia inteiro, cozinhando as palavras amargas. No final da tarde, depois de umas doses de soro, o Seu Scliar voltou, pálido como cera. Dona Ernestina recebeu o patrão, mas estava mesmo intrigada com o Vilson que não havia dado palavra durante o serviço. O Vilson trocou de roupa antes do horário do ponto. Juntou os trens dele, a garrafa térmica, a marmita, o vidrinho de pimenta malagueta, mais uma ou outra coisinha sua, arranjou tudo dentro da mochila. Puxou uma cadeira, sentou, não desviou os olhos do assustado Seu Scliar. Assobiou o hino do Atlético, inteirinho. Na hora do “galo forte, vingador”, pegou a carteira de trabalho no bolso da calça e deixou sobre o balcão. Foi embora.

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