Um encontro com Fátima Oliveira
Por Cidinha da Silva – texto de 2008
É tarefa complexa resenhar o livro Reencontros na Travessia: a tradição das carpideiras (Mazza Edições, 2008), segundo romance de Fátima Oliveira, e dizer coisas fundamentais sobre a obra, depois do excelente prefácio de Erisvaldo Pereira dos Santos. Ela, doutora das Ciências Médicas, ele, doutor das Ciências Humanas. Mas, do que trata a boa Medicina, senão do essencialmente humano?
Inicialmente, observo que o objeto-livro Reencontros na travessia: a tradição das carpideiras é muito bem cuidado, bonito, gostoso de ver, além de despertar a vontade de folhear. O livro traz uma peculiaridade, a orelha foi escrita pela própria autora. A escolha parece indicar que ela, Fátima Oliveira, poderá apresentá-lo melhor do que qualquer outra pessoa. Corajoso, isto, pois existe uma linha tênue entre a propriedade e a arrogância. Fiquei com a sensação de que Fátima demarcou, por este caminho, o caráter intimista do texto – que não deve ser compreendido como sinônimo de autobiografia. Fátima desdenha o risco de “explicar o texto” ou tentar completá-lo, como se ele não tivesse dito tudo o que tinha a dizer por si mesmo e anuncia o romance, introduz o tema, convida o leitor e a leitora a promover certos olhares, a atentar para o fundamento do bendito “tirado”, para a “ incelência” cantada por ela ao escrever esta obra deliciosa.
Sou forçada a dizer que duvido do cumprimento da promessa feita na dedicatória, embora promessa seja dívida. A obra é dedicada ao neto e à neta da autora que reclamam do tempo excessivo despendido pela avó no computador. Ela os tranqüiliza e assegura que não a disputarão mais com a máquina, ou, “com nenhum livro”, pois sente que Reencontros na travessia: a tradição das carpideiras é o livro que sonhou escrever. Diz ela: “É meu legado de fragmentos da memória cultural da gente simples e do cantar dos grilos do sertão que eu desejo que um dia vocês aprendam a amar.”
Não sei não. Suponhamos que Brígida, por exemplo, personagem riquíssima e pouco explorada, apareça à Fátima em sonho e reapareça outras vezes cobrando um tratamento mais detido, um conto. Duvido que Fátima teime. Brígida e sua história são irresistíveis, quanta humanidade, dor e amor, encerram: sertaneja casada com um sertanejo tem com ele quatro filhos, apaixona-se por uma mulher e o coração não lhe deixa outra opção, senão, viver aquele amor. Deixa o marido e os filhos e vai amar por inteiro a mulher amada. Vivem a felicidade possível, por vários anos, até que a mulher amada se apaixona por outra e, desta vez, é o coração da amada de Brígida quem impõe outro caminho. E ela vai viver integralmente o novo amor, deixa Brígida sozinha (abandonada à própria sorte?) e assume todas as responsabilidades pela nova amada, que a família espanca quase à morte ao dar-se conta do proibido. Depois do troca-troca, a mulher-foco do amor de Brígida e da outra, escolhe relacionar-se com ambas. Em casas separadas, pelo menos. Fátima Oliveira tem uma dívida com Brígida e um compromisso com os netos (me lembra minha consciência). Acordo firmado com criança é coisa da maior seriedade. Mas Brígida insistirá, percebi a tenacidade dela.
E que marido seria aquele que não matou a mulher para “lavar a honra”, como ainda hoje é costume? Parece-me também uma personagem interessante. E a relação de Brígida com os filhos? Quem compreendeu? Quem a destratou? Quem continuou a amá-la? Lá na frente, uma das filhas de Brígida comparece ao casamento de Cacá (personagem central), trabalha na festa ao lado da mãe, é uma pista, mas e os outros três? E como será o sentimento de passar de “matriz à filial”, experimentado por Brígida, para usar expressão da própria narradora? Tudo isso vivido no grupo das carpideiras, naquele cotidiano miúdo de novenas, umas nas casas das outras. É matéria ficcional rica por demais para deixar adormecido. Brígida merece mais do que um conto, merece uma novela, um romance. E se o compromisso com os netos falar mais alto, olha que roubo o argumento e crio uma história do meu jeito.
Na construção do texto literário, Fátima não é abandonada pela mulher de Ciência que é, pelo olhar investigador, antropológico, documentarista. Opta por explicitar suas fontes de pesquisa (jornais, livros, Internet), apresentadas como investigação feita pelas personagens e com literais notas de rodapé. Vai que alguém se interesse em pesquisar as carpideiras por métodos científicos que desemboquem numa monografia, dissertação ou tese? Nunca se sabe. Por outro lado, a atitude não deixa de configurar uma planta baixa do romance, expressão emprestada de Autran Dourado, que detalha ao leitor o método de trabalho da autora, seus caminhos, a orientação do foco narrativo das personagens, dentre outras escolhas.
Fátima, como autora, também se mostra uma “mulher de ciência”, no sentido da sabedoria popular, uma mulher que sabe das coisas, pois, com habilidade de bordadeira, aprendida com Chiquinha de Dorinha, Mariana de dona Socorro e Zuleide, suas personagens, põe o conhecimento sistematizado, fruto do uso de métodos investigativos de comprovação da realidade, a serviço da validação e da documentação da Ciência do Povo. Mais do que nunca, compreendo a escolha do prefaciador: um doutor em educação, professor universitário e sacerdote de religião de matriz africana, um homem de muita ciência sobre o nascimento e a morte.
A divisão dos capítulos do livro é muito feliz e ajuda quem lê a organizar todas as informações oferecidas. Encantou-me, particularmente, o “Na trilha das carpideiras e dos rituais de carpir”,não tanto pela documentação da presença da arte de carpir em várias cidades do Brasil, mas pelo detalhamento da vida e da personalidade de cada carpideira do grupo (irmandade) de mãe Lali. No todo da obra, há um clima de sensualidade bem urdido, mesclado com outras tantas expressões de amor.
A história é bem narrada, os conflitos internos abundam, diálogos se entrecruzam e tudo se resolve de maneira criativa e bem articulada sob a batuta da autora, apaixonada pela obra que escreveu, mas que conseguiu manter a lucidez ao contruí-la, ao contrário do que costuma acontecer quando entramos no alfa da paixão. Deve ser por isso que li em algum lugar, um depoimento de Fátima dando conta de que a personagem Cacá, em vários momentos, chocou sua moralidade. Para nossa sorte, Fátima é lúcida e Cacá desvairada.
Quanto ao capítulo “As primeiras cenas da Grotões dos Bezerras Filmes”, há problemas de estrutura. Nota-se a existência de cortes que não foram bem suturados, criaram-se vazios e passagens abruptas no texto que merecem ser corrigidos.
Nos três capítulos seguintes, últimos do livro, há declarações de amor variadas: de Cacá para Pablo e vice-versa – o casal apaixonado do romance; de pais para filhas e destas para os pais - nesse momento do texto, as figuras masculinas, mais discretas, sempre, crescem maravilhosamente em sua humanidade -; do homem e da mulher para a terra, para o sertão que vive neles e no qual vivem. Há também demonstrações comoventes de respeito, valorização e promoção dos saberes de outrem; solidariedade entre as pessoas, lealdade a princípios, valores e às pessoas, com o compromisso inarredável de promover dignidade em suas vidas. Não bastasse a beleza e humanidade dos capítulos finais, estes se prestariam também a ser utilizados como cartilha pelo vasto contingente de pessoas que trabalham com a idéia de voluntariado nas empresas e na sociedade civil. É que Cacá, por meio de seu exemplo de gestão, ensina como se faz. Ela oferece o melhor de si para o povo de Grotões dos Bezerras. É uma artista e como tal, ajuda o povo a reconhecer, valorizar e transmitir sua arte aos mais novos, garantindo, inclusive, as condições materiais para que a transmissão de conhecimento ocorra e os talentos emerjam. Cacá dá os exemplos fundamentais junto com as receitas de comidas típicas dos Grotões dos Bezerras e do povo simples do sertão, é só seguir.
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