Discurso de Hilton Cobra, Presidente da Fundação Cultural Palmares, proferido na Câmara dos Deputados em comemoração aos 25 Anos da FCP
Vinte e cinco anos da Fundação Cultural Palmares! 25 anos de uma trajetória em que as políticas públicas voltadas para a promoção das culturas negras consolidaram-se como uma plataforma fundamental para o desenvolvimento do país. Instituída por meio do decreto presidencial 7668 no governo do presidente José Sarney, em 22 de agosto de 1988 – ano do centenário da abolição –, esta Fundação já nasceu com vocação para converter as manifestações artístico-culturais negras em aporte fundamental para a transformação do país. Naquele ano, como a memória coletiva não nos deixa esquecer, emergiam na superfície do tecido social as reivindicações históricasdos movimentos negros, com um menu temático tão abrangentequanto justo, visando atender as demandas reprimidas de quinhão majoritário dos cidadãos brasileiros. As vozes correntes naquela época eram moduladas pela denúncia do racismo e da discriminação racial, eixos extremos de diferenciação negativa que aprisionavam a população negra nos setores mais vulneráveis de nossa sociedade.
Embalados por uma atmosfera propícia, por debates febris, mulheres e homens negros reinauguram, em 1988, um novo tempo discursivo que estabelece outras possibilidades de diálogo com o poder público. Lembremos: vivíamos a era do “direito a ter direitos”, não recuávamos na busca efetiva pela democracia, exigíamos a consagração irrevogável da liberdade de expressão num país que ainda exibia os traços de um passado de exceção... É nesse cenário, considerado um ponto de inflexão importante da nossa história recente, que a Fundação Cultural Palmares é instituída, fincando raízes no território da cultura. Vale o registro de que, inabituados com a incorporação das reivindicações dos movimentos negros nas raias do serviço público federal, ativistas de todo o Brasil, não sem razão, colocavam em dúvida a possibilidade de a Fundação tornar-se efetivamente caixa de ressonância dos anseios da população a quem ela se destinava.
Em seu papel prioritário de promover, simbólica e estruturalmente, as culturas negras, foram várias as frentes que a Fundação Palmares abriu:
1) Inseriu nas políticas públicas de cultura a dimensão abrangente e capilar das manifestações negras. É sempre bom lembrar que essas manifestações mesmo pulsando em todo o território nacional, com o papel ativo de desenharema paisagem cultural do país, eram invisibilizadas pelo Estado, subalternizadas pelas concepções de cultura que orientavam gestores públicos da área, subsumidas nas planilhas orçamentárias dos departamentos públicos;
2) Em consonância com o espírito do tempo, esta Fundação também não se furtou em desenhar e executar políticas voltadas para os povos e comunidades de matriz africana, com especial relevo para os povos quilombolas e povos de terreiro, considerando que a permanência dessas comunidades nas franjas da sociedade relegam o país aposições indesejáveis no ranking do desenvolvimento humano (ressalte-se que a questão quilombola tornou-se um dos tópicos nucleares das ações da Fundação);
3) A Palmares estabeleceu parcerias internacionais, partindo do entendimento de que as experiências culturais comuns da diáspora – legadas pela tragédia da escravidão – dinamizam a vida nacional;
4) A instituição fez do continente africano um importante aliado para a execução dessas parcerias;
5) Integrou fóruns sobre a política cultural no país;
6) Celebrou e festejou as manifestações artístico-culturais de forma lúdica, sem desconsiderar os aspectos políticos que as tencionam...
Percorrida essa trajetória, para onde, então, esses 25 anos nos levam? Qual o futuro que se projeta para mais 25 anos da Fundação Palmares? Um ligeiro sobrevoo sobre esses avanços nos permite observar, em grande angular, que a incidência das ações da Palmares na sociedade e a consequente reelaboração de uma política nacional de cultura que traduza as demandas vocalizadas pelas populações negras dão a esta instituição um status de relevância política para pensar o Brasil que queremos.
E qual o Brasil que queremos? Sem sombra de dúvidas, um Brasil onde educação, saúde, moradia, configurem indicadores de desenvolvimento, ou seja, um “Brasil sem miséria”, conforme oportuno slogan do governo da presidenta Dilma. Seja qual for o ângulo ou perspectiva que adotarmos para dimensionar o nível de desenvolvimento de uma nação, além dos itens acima arrolados, a cultura irá, certamente, figurar como elemento central; tornaram-se proverbiais as discussões que a tomam como vetor majoritário para a emancipação de um país. Reflexões globais, tecidas em diversos lugares do mundo, são unânimes em relação a isso: investimentos das nações desenvolvidas no campo da cultura respondem a esse princípio. Políticas desenvolvidas por diversos países, posicionamentos de organismos multilaterais, como a Unesco, não deixam dúvidas quanto à imprescindibilidade da cultura, recoberta por três aspectos essenciais: a dimensão social que ela comporta, a sua capacidade para promover o desenvolvimento integral do ser humano e de ser um propulsor para superação da pobreza.
Ora, se a cultura é revestida de valor exponencial, como poderemos retraçar uma política nacional da área em contínua sintonia com as demandas mais prementes da população, de modo que ela incida sobre os níveis de desenvolvimento do nosso país? Em que medida esse retraçado diz diretamente respeito às culturas negras? Como a Fundação Palmares poderá ser refundada a partir desses questionamentos?
As perguntas, complexas em sua essência, nos levam a revisitar as políticas, os mecanismos e propostas que dão musculatura às ações e projetos culturais no Brasil. Esse exercício, inevitavelmente, põe a nu as limitações institucionais dos setores que abrigam a cultura (da esfera federal à municipal), revelado, entre outras coisas, no baixo orçamento a ela reservado. Tal paradoxo nos encaminha para uma questão fulcral: a imperiosidade de se instituir legislação específica para a cultura brasileira, que possa conduzi-la a um patamar condizente com sua própria natureza: de promoção de desenvolvimento humano e social, conforme já salientamos.
Quando falamos em legislação específica estamos defendendo a ideia de que os decretos que orientam e fiscalizam as políticas públicas e gerenciam o orçamento não podem ser tomados indistintamente no escopo da política nacional. O fazer cultural possui nuances e particularidades que não se adequam, por exemplo, aos mesmos procedimentos de uma obra de engenharia. Submeter esses dois fazeres a um mesmo mecanismo único de controle, fiscalização e monitoramento provoca disfunções estruturais, impactando negativamente na execução de políticas de cultura, dotadas de dinâmica específica.
Como fomentar a cultura brasileira, sem que a legislação não seja impedimento para a fluidez do trabalho artístico, para a criatividade de homens e mulheres que não estão perfilados ao conjunto complexo de exigências para submissão, execução, monitoramento e prestação de contas de projetos? Torna-se urgente, pois, que pensemos em vias legais para que desburocratizemos e destravemos a legislação pública para que ela seja uma facilitadora e não um obstáculo para a promoção das políticas de cultura. Do nosso lugar, de fala, em que essa desburocratização nos concerne?
A Fundação Cultural Palmares é, de antemão, signatária de ideias e projetos que pensem um outro modo de fazer cultura no país. Tal concepção nos encaminha para outro patamar de nossa reflexão: para além de uma legislação que capte às sinuosidades da prática cultural no Brasil, que valorize o capital simbólico de agentes culturais em condições vulneráveis, é preciso considerar o papel fundamental das culturas negras nos processos de desenvolvimento econômico e social sustentáveis.
Num país em que os indicadores demonstram que a população negra ainda integra, majoritariamente, os setores mais pobres, mais frágeis, há que se dizer que é urgente converter-se as práticas culturais dessa população em mecanismo importante de transposição da pobreza e garantia de desenvolvimento do país. Embora reconheçamos a herança africana na vida nacional, esse papel, muitas vezes, subordina-se a concepções hierárquicas que a destitui de seu caráter universalizante. Às vezes, temos a tendência quase invencível de estreitar o campo cultural negro, reconhecendo-o apenas pela via de manifestações artísticas já consagradas. Todo o resto, fica sob o manto da invisibilidade. Tal invisibilidade alimenta toda a sorte de racismos, de ausência de políticas públicas que recubram o vasto espectro sobre o qual o fazer cultural negro se movimenta em nosso país.
Nos próximos 25 anos da Fundação Cultural Palmares é preciso querer mais. É preciso perturbar as noções anacrônicas de cultura negra, é preciso pensar os limites dos estereótipos que pairam sobre as manifestações advindas da matriz africana, é preciso tirar da subalternidade as práticas culturais de homens e mulheres negros, dando a eles soberania plena para exercerem sua humanidade e cidadania.
Que viva o candomblé
que viva a umbanda
que viva o vodum
que viva a quimbanda
que viva o maracatu
que viva a capoeira
que vida o jongo
que viva a congada
que viva o reinado
que viva o coco
que viva o samba
que viva o samba de roda
que viva o tambor de mina
que viva o bumba meu boi
que viva o reggae
que viva o hip hop
que viva o chorinho
que viva o acarajé
que viva a feijoada
que viva o caruru
que viva o vatapá
que viva o ximxim de galinha
que viva o abará
que viva a cachaça
que viva o povo quilombola
que via o povo do santo
que viva conceição evaristo
que viva zózimobulbul
que viva mãe beata
que viva mestre didi
que viva makotavaldina
que viva mãe stela de oxossi
que viva o nosso dizer o nosso saber
saudemos pois menininha do gantois
olga de alaketu
mãe senhora
milton santos
zumbi
ganga zumba
abdias nascimento
léliagonzales
carolinamaria de jesus
oliveirasilveira
raimundosouzadantas
beatriz nascimento
andrérebouças
cruz e souza
limabarreto
machado de assis
rubemvalentim
Para finalizar invoco o espírito de POLICARPO QUARESMA.
A pátria que eu quis ter é um mito, um fantasma criado po rmim no silêncio do gabinete. E, bem pensado mesmo, na sua pureza, o que vem aser a pátria? Empreguei minha vida atrás de uma quimera. A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas. A vida deve ser uma vitória.
Fui bom, fui generoso, fui honesto, fui virtuoso. Fui maluco. Mas que é um maluco, afinal? Os malucos são os reformadores do mundo. Nunca são os homens de bom senso nem os burgueses ali da esquina que fazem as grandes reformas do mundo. Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, não teríamos nunca deixado as cavernas.
Outros que sigam minhas pegadas – quem sabe? – venham a ser mais felizes. Minhas palavras de fé talvez possam ainda, na sua força de beleza e de esperança, atenuar o mau efeito de minhas desenxavidas. Não soube dizer com clareza e brilho o que pretendi, mas garanto: Em tudo o que disse estava minha sinceridade e minha honestidade de pensar. Que seja a insatisfação a nossa lei! Sejamos grandes!
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