O jornalismo publicitário


Por Marcos Fabrício Lopes da Silva em 26/08/2014 na edição 813 no Observatório da Imprensa
 
O poema “Relato”, que integra o livro Lugares Ares (2003), coloca o notável escritor Edimilson de Almeida Pereira como exímio crítico da mídia:
“A notícia/ irrompe de afluentes oclusos./ Nem há gentileza, o morno espanto das notícias./ Teus braços/dilatam outros tempos,/ a dolorosa crise que desperta/ dominadores e dominados./ Falaria, amor, de amor,/ despido da sentimental mercadoria/que nos atormenta./ A notícia/ demove as paisagens claras./ Nem há receio,/o forte impacto das notícias./ Com que humor/o relato de nossa extinção/ desponta nos olhos”.
Esmiuçando o que destaca a voz poética, o jornalismo, desde um século e meio, mais ou menos, vem passando a fazer parte de uma indústria cultural que, hoje, se converteu em sistema onipresente na vida do homem contemporâneo. O caráter mercantil que sempre definiu a figura da notícia colou-se a ela de tal forma que, agora, é raro que a aceitemos se não nos for dado algo mais que informação e conhecimento em troca de nossa atenção e consumo. O relato cotidiano dos acontecimentos de interesse público, conforme as normas de objetividade epistemológica, neutralidade axiológica e imparcialidade ideológica, é um bem em estado crítico. A colonização das formas históricas de expressão jornalística pela atitude mercantil e por intermédio dos expedientes publicitários chega já ao ponto em que, aparentemente ao menos, matéria alguma escapa ao tratamento leve, divertido, espetacular ou sensacionalista.
O universo da comunicação e da informação está radicado no espaço da pós-modernidade: livre mercado, livre competição, marketização, estetização, virtualidade, niilismo, transcomunicação, pastiche, rede, ultraliberalismo, just in time, razão cínica, globalismo, supernada, pluralidade, cibertecnologias, hedonismo, velocidade, presenteísmo, simulacro, localismo, orgia semiótica, pós-história e fundamentalismos. É o espaço da anomia, da crise do sentido, dos vazios teóricos e, ao mesmo tempo, ambiguamente, do avanço da tecnologia, da transnacionalidade da cultura e da economia e da absolutização da ciência. O regime de ultraliberalidade contemporânea, erigido com o apogeu do neoliberalismo no século 20, flexibiliza as regras sociais, econômicas e políticas e institucionaliza o modelo de “vale-tudo” na sociedade, esvaziando e enfraquecendo os poderes e linguagens estabelecidas, bem como criando um regime de ambiguidade e fragmentação universalizadas.
A linguagem do capital
“O nível de dedicação que o jornal exige, e sem o qual a coisa não vai, extingue o ser humano em pouco tempo. Essa dedicação ao longo de cinco anos teve como efeito que empobreci sob todos os aspectos... intelectual, emocional. Tive a clarividência de que estava me extinguindo como ser humano, completamente burrificado, porque não lia mais nada, nem romance, nem teoria. (...) Se o preço a pagar é esse pela dedicação exclusiva e integral ao jornal, então ele é alto demais. Ninguém aguenta mais tempo – quem aguenta, morre; senão fisicamente, pelo menos intelectual e emocionalmente.”
Esse expressivo testemunho do universo da produção noticiosa dado por Carlos Eduardo Lins da Silva no livro Mil Dias (1988) mostra como é deficitária a formação do jornalista. A não-valorização do trabalho de pensar está intrinsecamente relacionada com o atestado – ainda contemporâneo – feito por Walter Benjamin, no célebre ensaio O narrador (1936): “As ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis.”
Ainda se acredita na ideologia liberal de que o jornalismo seria a forma singular de esclarecimento da consciência pública. Como diria Machado de Assis, em O jornal e o livro(1959): “O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das ideias e o fogo das convicções.” Daí vem a nossa tradicional esperança de que os órgãos da imprensa podem e devem contribuir para a educação do povo. Entretanto, diante das evidências expostas, nota-se que educar não é informar. Educar é ensinar a pensar. Os jornais ensinam a pensar? Em sua maioria, não. Eles vêm contribuindo para a propagação da estupidez coletiva, visto que o jornalismo publicitário vem imperando sobre a imprensa investigativa. Nesse formato, os produtos da indústria midiática acabam sendo produzidos e vendidos com base nas máximas do marketing ultrapós-moderno que comercializa os gostos, os valores, os sentidos e as consciências dos próprios consumidores.
Incorporando a práxis de mercado, as páginas dos jornais, telejornais, radiojornais e net-jornais, sem escrúpulos, passam a relativizar os conceitos de verdade, realidade, conhecimento, informação e saber. Os discursos da publicidade e da estética, em conjunto com os do sensacionalismo, da espetacularização, da mais-valia, dos fait divers, inoculam o ethos do jornalismo. A antes imaculada linguagem do interesse público acaba tornando-se preferencialmente uma esfera de manipulações e licenciosidades. A imprensa passa, consequentemente, a falar a linguagem do capital.
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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, no Distrito Federal, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários


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