Um texto de fevereiro de 2014: Luíza Bairros e o vendilhão do templo
Luíza Bairros e o vendilhão do templo
Por Cidinha da Silva e Mariana Assis
Em texto recente, Reinaldo Azevedo, colunista da Folha e de Veja critica posturas políticas da Ministra Luiza Bairros valendo-se de expressões grosseiras e argumentos tradicionalmente utilizados pelos herdeiros da casa grande. Os negros no poder, representados pela Ministra, historicamente achatados e invisibilizados, no discurso de Azevedo são alçados ao posto de “petistas graúdos”. Há algo de podre no reino da Dinamarca, os beneficiários da branquitude estão assustados.
Diz o articulista: “a irresponsabilidade de alguns petistas graúdos nessa questão dos rolezinhos impressiona. São capazes de tudo. A presidente Dilma precisa decidir se vai permitir que subordinados seus brinquem com fogo”.
Ora vejam, o que seria mesmo brincar com fogo? Seria explicitar o fundamento racial das assimetrias socioeconômicas e culturais no Brasil? Seria iluminar com holofotes o campo minado das desigualdades? Seria o fósforo aceso do verbo de resistência e superação no barril de pólvora do racismo? É, tudo pode explodir, eles sabem e se resguardam.
Os rolezinhos emitem sinais de fumaça diferente daqueles vistos nas manifestações primaveris no inverno de 2013. No verão de 2014 ouvimos urros da caatinga sem irrigação, sem poço artesiano. Um mar de impossibilidades vomitando ondas, sem direção política (ainda), só vagas.
Azevedo cataloga Haddad, prefeito de São Paulo, como primeiro insano, por ter convocado o secretário da igualdade racial para ouvir a moçada dos rolezinhos, ao invés de chamar as áreas de segurança, assistência social ou qualquer outra (isso mesmo, qualquer outra) para a conversa. Ou seja, para aquele grupo de pessoas de pouco valor não existe especificidade, qualquer secretaria serve. Mas, Haddad é só um ardil, a intenção é mesmo achincalhar a Ministra Luiza Bairros, real ameaça ao status quo, alvo real da verborragia de Azevedo.
Ele diz que: “Agora, à Folha, a ministra da Igualdade Racial, Luiza Bairros, ultrapassa em muito a linha da responsabilidade. Segundo ela, a reação dos shoppings aos rolezinhos é coisa de brancos inconformados com a presença de negros naqueles ambientes. É MENTIRA, MINISTRA! Quem representa os “brancos” inconformados? Onde estão seus porta-vozes? Boa parte, talvez mais da metade, dos participantes dessas manifestações são… brancos!”
Eis a argumentação da Ministra:“De um lado está a percepção de grande parcela da juventude de que não tem direito a todos os espaços da cidade. Através dessa manifestação, eles reivindicam participação e presença nesses lugares, que foram reservados a pessoas de mais alta renda, majoritariamente branca. A manifestação dos jovens revela, por outro lado, aquilo que eles leram muito bem: existe uma parcela da sociedade que não quer a presença deles em determinados lugares. Então você vê manifestação de discriminação racial muito explícita em relação a esses movimentos. Em muitos sentidos, a liminar que proíbe a entrada dos jovens nos shoppings, ou pelo menos dá o direito de selecionarem quem entra ou não, é uma situação racista. A liminar consagra um processo de segregação racial do espaço, o que esses jovens conseguiram perceber muito nitidamente.”
Vejamos agora os comentários do articulista: “Trata-se de um discurso asqueroso e falso. Quando e em que lugar um negro, ou negros, ainda que em grupos, foi impedido de circular livremente nos shoppings e de usufruir de seus serviços? Quantas notificações ou casos existem no seu ministério a respeito, minha senhora? Quantos são os inquéritos? Cadê as ocorrências?”
E nós, o que temos a dizer? Uma ministra de estado é chamada de irresponsável, mentirosa, emissora de verdades, digo, mentiras asquerosas, discurso falso, num exercício de pirotecnia verbal que pretende impressionar e pressionar o leitor.
A sociedade brasileira faz ouvidos moucos aos berros contra a política de confinamento nas periferias, imposta a negros e pobres. As pessoas de bem silenciam, confortáveis face à privação do direito humano de ir e vir de negros e pobres. Essas atitudes bem pensadas e úteis são porta-vozes das elites e classes médias compostas por brancos inconformados com a presença massiva de negros no ambiente dos shopping centers.
Todas as vezes que o tema da ampliação dos direitos restritos dos negros emerge, o discurso racista brasileiro evoca a mestiçagem do povo, ou mesmo sua suposta brancura como artifício contrário que visa esmaecer as cores vivas do barril de pólvora, velha política lusitana de misturar as gentes para melhor reinar. E ainda que parte desses meninos e meninas seja definida como branca, eles, de fato, o são, quando estão entre negros, nas periferias, nas favelas, onde qualquer traço fenotípico mais próximo do europeu pode significar possibilidades maiores de sobrevivência. Entretanto, quando chegam aos shoppings diluídos na massa negra, partilham seu estigma, pelo menos naquele momento, e tornam-se todos um conjunto de bonés ameaçadores, cuja brancura é encardida em meio aos brancos de pedigree. É uma brancura que só goza de valor entre os pretos, porque a eles não se atribui valor algum.
As perguntas de Azevedo são inócuas, para respondê-las, senhor jornalista, experimente pegar um dos seus negros de estimação, digo, de sua estima, um empregado ou empregada leal e mande-o a um shopping, sozinho, não precisa ser em grupo. Coloque-o para circular a esmo pelos corredores de um shopping qualquer. Passados os primeiros 15 minutos, caso não tenha ainda sido abordado pelos seguranças do estabelecimento e expulso de lá, ou tenha sofrido agressão covarde em um quartinho de fundos, próprio para tortura, experimente ouvir a conversa dos seguranças no rádio durante os 15 minutos de circulação da pessoa negra de olhar perdido pelas vitrines... O senhor verá que ela terá sido o tema de acompanhamento detalhadodos seguranças que, em código terão se referido a ela como elemento suspeito ou, de maneira mais explícita e vulgar, terão destacado características corporais ou de indumentária para diferenciá-la dos freqüentadores habituais do shopping e para mantê-la sob vigilância constrangedora.
O texto de Azevedo prossegue grotesco e intimidatório: “A fala da ministra é, além de irresponsável, oportunista. Bairros tem de dizer se concorda com os rolezinhos e se acha que eles são procedimentos seguros, inclusive para aqueles que deles participam. Ultrapassada a linha da prudência e da responsabilidade, aí tudo é possível. A ministra ataca também a PM: (citação de Azevedo) “A PM, infelizmente, ao cumprir decisão judicial, de certa forma recebe respaldo para fazer algo que já fazia e faz cotidianamente. Que é criar um perfil de criminoso associado à pessoa negra, e mais particularmente ao jovem negro.”
A Ministra agora é adjetivada como oportunista. O porquê de tratá-la assim, o jornalista não explica. A Ministra e todas as pessoas sérias, comprometidas com princípios humanos e democráticos, concordam que os jovens integrantes dos rolezinhos têm direito de ir, vir, de reunir-se, de vestirem-se como desejam e mais, devem ser protegidos em seu direito de associação e expressão de valores culturais. As aglomerações públicas engendram cuidados específicos de segurança e as pessoas responsáveis pela garantia da ordem pública devem estar preparadas para garanti-la, respeitando os cidadãos e evitando a violência.
Estudo do Instituto Sou da Paz, em São Paulo, mostra que os homicídios são a causa primeira de mortes de homens negros. Está escrito na conclusão da pesquisa: "no caso dos negros, os homicídios representam uma parcela de 29,2% das mortes violentas, enquanto os acidentes de trânsito são os principais responsáveis por mortes em razão de causas externas de brancos: 24,2% (neste grupo da população, os assassinatos são apenas a terceira causa, atrás de quedas acidentais). Além disso, duas de cada três mortes em decorrência de confrontos com policiais (144 no total) são de negros. Na prática, isso significa uma taxa de 2,3 vítimas negras para cada 100 mil, contra 0,6 brancos por 100 mil no mesmo tipo de ocorrência."
Contudo, gente como o articulista deve argumentar que as coisas sempre foram assim e os negros “nunca” reclamaram. Quem esta Ministra Luiza Bairros pensa que é?
O certo é que, os dados acima apresentados e tantos outros sobre o tônus racial da violência no país autorizam a Ministra a declarar enfática: “a polícia, cotidianamente, cria um perfil criminoso associado à pessoa negra, e mais particularmente ao jovem negro.”
Segundo Azevedo, a repórter da Folha, Andréia Sadi, retira do contexto uma observação do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) no Twitter, dirige duas perguntas à ministra, e, segundo ele “se tem, então, um momento de notável mistificação”.
Seguem aspas da intervenção da repórter e da resposta da Ministra: “O senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) chamou os jovens dos “rolezinhos” de “cavalões”. Há o que temer nas manifestações?Eu acho que haverá o que temer se as pessoas, e determinados parlamentares, continuarem a dar declarações que confirmam a desumanização das pessoas negras. Esse tipo de resposta pode acirrar, entende? Existe uma postura e uma intenção absolutamente pacífica nessas movimentações. Os problemas que têm havido são derivados da reação das pessoas brancas que se assustam com essa presença [dos jovens nos shoppings].”
“O senador relatou ter levado os netos ao Shopping Morumbi e escreveu no Twitter: “Imagino como eu e demais avós reagiríamos caso um bando de cavalões cismassem de dar um rolê por lá”. O que a senhora tem a dizer?O racismo desumaniza a pessoa negra. Ele não vê um ser humano, vê um animal potencialmente perigoso. Mas acho que você tem que reforçar o seguinte: conversei com a secretária de Justiça de São Paulo e ela me assegurou que a disposição do governador é fazer com que a atuação da policia seja a mais correta possível e qualquer abuso seja repudiado. Acho que esse é o tom que temos que dar a esse fenômeno.”
Azevedo comenta: “Com o devido respeito à ministra, sua fala é de uma vigarice intelectual como raramente se viu. Começo com a repórter Andreia Sadi. Não sei a sua origem. No interior de São Paulo, de onde vem Aloysio, e de onde venho também, “cavalão” não é ofensivo, não, Andréia! “Cavalão” é sinônimo de rapaz saudável, forte, corpulento. Aliás, procure aí no Houaiss, oferecido pelo UOL, e você vai encontrar essa acepção. Sim, “cavalão” também pode ser “indivíduo rude e grosseiro”, segundo o dicionário. Em São Paulo, nunca! Também se diz da moça muito forte, saudável, ser “uma cavalona”, feminino no aumentativo impossível, segundo a norma culta . Note, diligente Andréia, que, se a intenção fosse associar as pessoas aos animais propriamente, não se diria da jovem ser uma “cavalona”, mas uma “eguona”. Quando se diz de um homem ser “um touro”, não se está a dizer que ele tem chifres, mas que é muito forte. Dica, Andréia: se você for um dia a Dois Córregos e, numa roda de truco, um jogador chamar o outro de “lazarento!”, é grande a chance de ser um elogio. Sinônimo: sagaz, inteligente, ousado — em suma, uma “lazarento!” Como explicar? Bem, primeiro é preciso entender.As respostas da ministra são intelectualmente delinquentes, ao acusar o senador de estar associando “negros” a animais. Ele deveria acionar a senhora ministra na Justiça por calúnia. Ou, então, cobrar que ela se desculpe”.
Vê como a vida é dura, caro leitor, cara leitora. Todo processo de leitura se dá a partir da sua formação sócio-histórica. Os sentido são construídos a partir de um diálogo franco e conflituoso entre as ideologias do leitor e a materialidade do texto, carregada das ideologias do autor. Portanto, é natural que, muitas vezes, as interpretações de um determinado texto entrem em choque com as intensões de seu autor, o sentido não está escondido no texto e não há apenas uma leitura correta. No entanto, não podemos negar que existe uma materialidade textual, que não podemos ignorar completamente enquanto construímos seus sentidos possíveis.
Diante disso, os incontáveis equívocos de Reinaldo Azevedo ao interpretar as declarações da Ministra Luiza Bairros tornam-se ainda mais inaceitáveis. Um homem com o perfil racial e ideológico do articulista, típico herdeiro da casa grande, não poderia compreender a magnitude das declarações e análises da Ministra, pois suas ideologias se baseiam em uma história de domínio, pretensa superioridade e exploração humana. Ainda que muitas pessoas brancas tentem negar seus privilégios, foi a história, escrita por elas mesmas, que lhes legou o lugar privilegiado que ocupam até hoje. Por isso a Ministra, de maneira cortante, apontou o desconforto dessa classe dominante branca diante da ocupação do espaço que acostumou a chamar de seu – ainda que sejam espaços públicos – por uma turba de aspecto estranho e desagradável aos seus olhos delicados.
Por mais incômodo que possa ser para o colunista ver seu lugar de neto ou bisneto de escravocratas exposto publicamente, não há como negar que as classes sociais no Brasil têm pertencimento racial (a maioria é negra e mestiça) e a elite que brada contra a presença negra nos shoppings centers é branca.
Quando cita a comparação de pessoas a animais (cavalões, cavalonas, etc) feita pelo político do PSDB, Azevedo defende-se com base em argumento linguístico bastante coerente. De fato as expressões tem sentidos diferentes em contextos sócio-históricos diversos, porém já passou da hora de exigir de figuras públicas, principalmente políticos e agentes de comunicação, o mínimo de sensibilidade diante das questões e reivindicações do grosso da sociedade brasileira.
Na comunidade discursiva do político e do jornalista a expressão “cavalão” pode até ser pertinente. Lembremos que em muitas comunidades brancas também é comum e divertido chamar negros de macacos, mas, a pergunta é: vamos defender a liberdade de expressão para isso também? O curioso é que ninguém quer falar de variedade linguística quando o tema em questão é a valorização de uma linguagem VERNACULAR, mas quando se trata da defesa de uma figura importante referindo-se àqueles que considera inferiores, todos se transformam em sócio-linguistas gabaritados.
O que a Ministra fez foi rechaçar esse tipo de atitude ofensiva. Mudanças linguísticas ocorrem a partir das comunidades discursivas e, enquanto pessoas públicas e formadoras de opinião não se posicionarem contra o discurso racista camuflado em “expressões da cultura de cada um” não avançaremos na luta contra toda e qualquer forma de discriminação.
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