Crônica não é um relato
AULA 1 LIBERADA – CRÔNICA NÃO É UM RELATO DE QUALQUER COISA
MOMENTO 1
A professora pediu que ela escrevesse um relato de algum aspecto de sua saída de casa para o local da oficina de criação literária (eram tempos pré-pandêmicos), mas que contivesse alguma surpresa. Isso porque a gente quer seduzir quem nos lê, não é mesmo?
Para balizar o trabalho, a professora explicou a diferença entre uma ata de reunião e uma crônica. Ao escrever uma ata, você precisa ser fiel ao que aconteceu. Você não pode dizer que uma pessoa prestou contas de apenas 200 reais se ela recebeu 2.000 e prestou contas do valor total. Se o fizer, você lançará dúvidas sobre a honestidade dela. Também precisa transcrever o que as pessoas contarem, o mais próximo possível do que foi dito, preservando inclusive as palavras escolhidas pelo emissor. Ser relatora é isso. Em alguns casos, como nos julgamentos do STF, você pode e deve emitir opinião sobre os fatos em tramitação, mas, inicialmente, você deve reunir todas as informações do processo em relação àquele tema.
Uma crônica é outra coisa, uma cronista não é uma relatora. Mesmo quando “relatamos a realidade”, temos à nossa disposição inúmeras possibilidades de relatar, vejamos algumas delas: com alegria, criticidade, humor, ironia, riqueza de detalhes, singeleza, crueldade, cinismo, amorosidade, malícia, duplo sentido, intenções escusas, delicadeza. Três pessoas que contarem uma mesma experiência pela qual passaram, contarão coisas distintas porque sempre haverá uma marca pessoal nessa narrativa, aspectos importantes para uma pessoa não são para outra; uma pessoa tem visão mais panorâmica, outra não consegue ver o geral, só consegue perceber detalhes (muitas vezes insignificantes, pelo menos ao julgamento da terceira narradora do grupo).
Por essas e outras, cara leitora, caro leitor, dizia a velha sábia, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
A cursista aplicada escreveu o seguinte parágrafo: Ela saiu de casa às cinco da tarde, fechou a porta atrás de si, caminhou pelo corredor até o elevador, mas resolveu encarar a escada. Desceu escorando-se no corrimão, caminhou até o início da escada seguinte e avistou o porteiro. Voltou imediatamente e apertou a maquinha de álcool em gel e esfregou nas mãos generosa quantidade. Desceu as escadas evitando o corrimão, cumprimentou o porteiro sem encará-lo. Quando chegou à porta da rua, abriu-a, sorriu, ainda tinha sol. O porteiro deu tchau, ela respondeu sem virar a cabeça. Começou a deslocar-se rumo ao metrô e à medida que caminhava as vozes ficavam mais nítidas, de repente, um instrumento é arremessado da janela, bate na copa de uma árvore, cai na carrocinha do catador de papelão e escorrega no chão. Ela pensa: Que sorte não ter rachado a cabeça do pobre homem”.
PRONTO! TE CONVENCEU? TE ENCANTOU? DESPERTOU SUA CURIOSIDADE? VAMOS COMENTAR O TEXTO? Para vocês não se assustarem, a cursista e o texto são minhas criaturas, fui eu mesma que escrevi para esse nosso exercício conjunto de escrita de uma crônica.
QUAIS SÃO AS VIRTUDES E FRAQUEZAS DESSE TEXTO? VAMOS REESCREVÊ-LO?
MOMENTO 2
VAMOS DISCUTIR FRASE POR FRASE DO TEXTO, PROBLEMATIZANDO OS LIMITES DO RELATO E POSSIBILIDADES PARA TRANSFORMA-LO NUMA CRÔNICA.
ELA SAIU DE CASA ÀS CINCO DA TARDE,... Essa definição de tempo dá a quem escreve uma possibilidade de vincular acontecimentos a esse horário determinado [PONTO POSITIVO].
FECHOU A PORTA ATRÁS DE SI... Aqui temos um recurso besta, uma tentativa de sofisticação linguística inócua. Quem você conhece que fala assim: “fulano fechou a porta atrás de si”? A gente fecha a porta e pronto. Além disso, experimente fechar a porta estando de frente para ela se você estiver saindo do lugar. Percebeu o malabarismo necessário? A depender da construção frasal isso até chamaria a atenção do leitor, mas “fechar a porta atrás de si” é uma bobagem tremenda de quem quer “falar difícil” quando está escrevendo.
CAMINHOU PELO CORREDOR ATÉ O ELEVADOR, MAS RESOLVEU ENCARAR A ESCADA... tudo bem a personagem chegar até o elevador e resolver “encarar a escada” (o leitor ainda nem sabe se é para cima ou para baixo e isso é bom, o uso do verbo “encarar” abre possibilidades) mas, “caminhar pelo corredor” é uma coisa óbvia demais, a não ser que seja uma criança muito pequena que nos surpreenda ao realizar essa sequencia, fechar a porta e sair caminhando sozinha, mas, uma criança assim pequena não teria altura para chamar o elevador se resolvesse fazê-lo (assegurar verossimilhança é algo importante quando escrevemos coisas que precisam de lastro de realidade para se sustentar).
Outra opção que justificaria essa frase tão óbvia [caminhou pelo corredor] seria a personagem ter alguma condição que transformasse o fato de caminhar pelo corredor em algo inusitado, por exemplo, uma pessoa sonâmbula, uma pessoa que abandonasse muletas ou um andador.
DESCEU ESCORANDO-SE NO CORRIMÃO, CAMINHOU ATÉ O INÍCIO DA ESCADA SEGUINTE E AVISTOU O PORTEIRO. Pensemos: se a pessoa chegou até o final de uma escada de prédio e foi até outra escada, seria muito improvável que ela fizesse o percurso de bicicleta, patinete, motoneta, até de skate, porque nada nos foi informado sobre a existência de um skate na cena, logo, ela iria mesmo caminhando e, se é assim, para que informar isso? “Descer escorando-se pelo corrimão” [PONTO POSITIVO], por sua vez, é uma informação relevante porque abre possibilidades: Pode nos dizer algo sobre a idade da pessoa e sobre possíveis dificuldades para descer escadas, seja pela idade, seja por problemas nos joelhos. Pode nos informar também que se trata de uma pessoa precavida por já ter sofrido acidente em escada ou por ter sabido que aconteceram. São cartas na manga de quem escreve.
VOLTOU IMEDIATAMENTE E APERTOU A MAQUINHA DE ÁLCOOL EM GEL E ESFREGOU NAS MÃOS GENEROSA QUANTIDADE. A frase anterior nos conta que ela voltou imediatamente quando “avistou o porteiro”. O porteiro, então, faz com que ela se lembre de alguma coisa. Na condição de leitora, eu penso: O que esse porteiro tem? Que poderes são esses? Será aquele cara cuidadoso que passa álcool em gel nas mãos todas as vezes que sai do elevador ou desce as escadas utilizando o corrimão? O porteiro teria contado a ela alguma história improvável de contágio de Covid e vê-lo a az se precaver? O próprio teria tido Covid? Não temos uma resposta, pois a frase nos motivou a pensar em muitas coisas e isso é ótimo, mas, ao invés de fechar com chave de ouro, nossa autora escorrega na casca de banana. Por quê? Qual é a pessoa pedante da sua bolha que diz no dia a dia: “ESFREGOU NAS MÃOS
GENEROSA QUANTIDADE”? Para! Outra frase besta e desnecessária, pirotecnia verbal de autora que pretende impressionar o leitor ao empregar expressões rebuscadas.
DESCEU AS ESCADAS EVITANDO O CORRIMÃO, CUMPRIMENTOU O PORTEIRO SEM ENCARÁ-LO... O fato de evitar o corrimão aqui pode estar relacionado aos cuidados com a pandemia, deduzimos isso pela volta da personagem á maquina de álcool em gel. O inter-relacionamento das frases vai construindo cenários na nossa cabeça [PONTO POSITIVO]. Eu me perguntaria por que ela não olha para o porteiro? Seria porque o porteiro não merece seu olhar? Ela faz parte daquela gente esnobe que trata porteiros como se não fossem gente? O porteiro teria tido Covid, isso seria mais ou menos segredo no prédio e por cuidado com o homem, ela não queria que ele soubesse que ela sabe? Além disso, ele poderia estar tão acabrunhado e com medo de perder o emprego por ter tido Covid, sim, poderiam culpabilizá-lo por usar metrô e ônibus para se locomover, que qualquer olhar poderia deixa-lo em pânico, por isso ela evitou olhá-lo. Não sabemos, mas podemos pensar nisso tudo e é muito bom que essas possibilidades sejam acionadas[PONTO POSITIVO].
QUANDO CHEGOU À PORTA DA RUA, ABRIU-A, SORRIU, AINDA TINHA SOL. Pensemos: Se você chega até a porta de saída e ninguém a abre para você ou ela abre automaticamente, você mesma a abrirá, certo? Então por que o seu texto precisa me dar essa informação óbvia? Contudo, o fato de nossa personagem sorrir (vírgula) e reparar que ainda tinha sol são PONTOS POSITIVOS, pois oferecem frestas interpretativas, proporcionam à autora caminhos para desenvolver a história.
O PORTEIRO DEU TCHAU, ELA RESPONDEU SEM VIRAR A CABEÇA... Talvez tenhamos aqui um elemento a mais sobre a possível falta de importância do porteiro para a personagem, ou não, tem porteiro que quer ser próximo como se fosse da família e você precisa mesmo colocar limites.
COMEÇOU A DESLOCAR-SE RUMO AO METRÔ E À MEDIDA QUE CAMINHAVA AS VOZES FICAVAM MAIS NÍTIDAS... Tudo bem, vamos perdoar o “Começou a deslocar-se”, mesmo sendo mais legal demonstrar, indicar o movimento de deslocamento do que a construção dessa frase cabal, mas, vamos perdoar a autora porque tem um suspense bem anunciado aí nas “vozes que ficavam mais nítidas”, posso pensar que ela já vinha ouvindo as vozes antes [BOM INDICADOR DE MOVIMENTO].
DE REPENTE, UM INSTRUMENTO É ARREMESSADO DA JANELA, BATE NA COPA DE UMA ÁRVORE, CAI NA CARROCINHA DO CATADOR DE PAPELÃO E ESCORREGA NO CHÃO... Aqui, o uso da locução adverbial “de repente” como recurso para indicar um acontecimento abrupto não tem perdão, é muito clichê, a autora poderia ter-se empenhado um pouco mais na criação da imagem. O “instrumento arremessado”, por sua vez, abre muitas possibilidades: O que seria esse instrumento? Qual o seu uso? [PONTO POSITIVO]. O percurso do instrumento atirado é também interessante, esse amortecimento que a copa da árvore e a carrocinha carregada de papelão oferecem pode ser gancho para alguma peculiaridade do instrumento que ainda será explorada [PONTO POSITIVO]. Talvez eu usasse o verbo “quicar” porque se for um objeto consistente (e parece ser, afinal ele poderia rachar a cabeça do catador) ele não “escorregará”, ele cairá com força no chão. A carrocinha em si indica muita coisa [PONTO POSITIVO]: Possível cenário urbano; contexto de profunda desigualdade social expresso numa carroça puxada por um homem no asfalto; uma pessoa que tira o sustento daquilo que as outras descartam.
ELA PENSA: “QUE SORTE NÃO TER RACHADO A CABEÇA DO POBRE HOMEM”... Por que ele seria um pobre homem? Além das possibilidades já especuladas sobre as desigualdades sociais, esse personagem teria tido gestos que aprofundariam a precariedade em que vive? Eu, por exemplo, já vi catadores de material reciclável abrindo garrafas retiradas do lixo para beber restos de líquido e só aí me ocorreu pensar sobre a sede que os acomete ao longo do dia, para a qual não deve haver água disponível. Quem recolhe material reciclável não deve ter dinheiro para gastar com água potável, provavelmente espera a volta para casa (quando se tem casa) para beber água. E o que é isso, minha gente?
SÃO AS DIGRESSÕES E SINAPSES QUE A LITERATURA ME PERMITE FAZER, ME IMPULSIONA A FAZER. O TEXTO ACIONA OS MEUS REPERTÓRIOS QUE PASSAM A DIALOGAR COM O TEXTO EM TELA. Nem preciso dizer que foi PONTO POSITIVO. Antes da atuação da força da gravidade, o fato de o instrumento arremessado não ter “rachado” a cabeça do pobre homem, me permite pensar que se trata de um instrumento com certo peso ou volume. Rachar é um verbo grave, diz muita coisa sobre a intencionalidade e a ação [PONTO POSITIVO].
MOMENTO 3
PRONTO! DESTRINCHEI O RELATO, FALTA AGORA ESCREVER A CRÔNICA. Esse é um bom exercício para você fazer com estudantes.
É ESSE TIPO DE EXERCÍCIO QUE A GENTE FAZ NA OFICINA DE ESCRITA CRIATIVA CHAVES DA CRÔNICA. Se você gostou, vem estudar com a gente. Chama pelo Whats (11) 985686207. ÚLTIMASVAGAS!!!
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