As folhas caem

por Cidinha da Silva Quando a gente não é mais só, tem torta de limão na sobremesa. Tem sobremesa depois da comida de todo dia, que não é mais ordinária, tem semente de cardamomo, damasco e shitake no macarrão improvisado, cobertura de alho e lascas de gengibre na costelinha. Tem boca de festa no almoço de segunda, resultado alquímico das sobras do domingo. Quando a gente não é mais só, torna-se comum jogar qualquer coisa na lixeira e encontrar por lá o vazio deixado por um saco de lixo transbordante, retirado sem fogos ou sofrimento. Quando a gente não é mais só, tem para quem picar as frutas no café da manhã, tem o prazer de acordar cedo para os rituais do amor de todo dia que pintam a vida de outras cores. Quando a gente não é mais só, volta a ter pesadelos e eles são enfrentados no próprio campo onírico e se você perde a batalha e acorda delirante, encontra o abraço salvador. Quando a gente não é mais só, as reclamações são ouvidas e você precisa aprender a rezingar só do que vale a pena ou é necessário. Quando a gente não é mais só, o cardápio da noite é maturado desde que os olhos se abrem ao Sol, a vida alimentar volta a ter estudo, surpresa, invenção. Quando a gente não é mais só, ganha presentes que quer tanto comprar, mas não consegue adivinhar o que sejam quando os recebe, porque nos acostumamos a nos presentear e já havíamos esquecido o gosto de alguém adivinhar nossos desejos recônditos ou de satisfazer aqueles mais explícitos. Quando a gente não é mais só, olha a Lua de janeiro e não se lembra mais dos pedidos feitos nos outonos passados. Foto: Charlene Bicalho

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