Autoria versus crítica literária
Eu e Agualusa respondemos a questões semelhantes sobre a relação autoria versus crítica literária, formuladas pelo jornalista Vagner Fernandes. As minhas respostas vocês leem na íntegra aqui; as do colega, junto com recortes das minhas respostas, vocês podem acessar no portal UOL, TAB de 02 de julho de 2023.
TAB: Cada vez mais há menos espaços nos grandes veículos para a reflexão crítica sobre obras literárias. A que o senhor atribui esse encolhimento, já que em outrora tivemos no Rio o “Prosa e verso” (O Globo) e o “Ideias” (JB)? Em São Paulo contávamos também com suplementos específicos na Folha e no Estadão.
CIDINHA DA SILVA: Desde os anos 1990 os jornais impressos estão desaparecendo no Brasil e no mundo. O Jornal do Brasil, por exemplo, deixou de circular, depois voltou como publicação digital. Os veículos impressos que permanecem, cada vez mais dialogam com as redes sociais e adotam um modo de operar que busca público, desesperadamente. Nessa confusão que exige também diminuição de custos, alcançada com o enxugamento das redações e a sobrecarga do número exíguo de profissionais que passa a se responsabilizar pelas publicações, o corte de tudo o que é considerado “supérfluo” torna-se regra. Numa estrutura enxuta, creio que a literatura é considerada como luxo, portanto, é muito fácil de ser cortada.
TAB: Itamar Vieira Júnior e Stefano Volp têm sido autores hostis às críticas de suas obras. No caso de Itamar, ele acusou de racismo uma crítica negra do “The Intercept”, que analisou desfavoravelmente “Torto arado” e o fez recentemente com a Lígia Diniz, da Quatro Cinco e Um, em função da crítica a “Salvar o fogo”. Disse que uma branca, convocada por um editor branco, fora escolhida para criticar a obra de um autor negro. Como avalia a postura do autor? E também de Setefano em relação à crítica feita por Luiz Maurício Azevedo, publicada pela Folha?
CIDINHA DA SILVA: Não vou comentar o posicionamento político dos colegas, precisaria do espaço de um ensaio para desenvolver minhas ideias a contento. Disponho-me a uma reflexão breve sobre a relação autora/autor versus crítica literária, que me parece ser o epicentro da questão.
A crítica literária bem fundamentada pode ajudar uma autora ou autor a corrigir erros e melhorar seu texto. Uma boa crítica apresenta argumentos, com os quais, eu, como autora, posso concordar ou não, mas aceito-os enquanto algo divergente do que penso ou escrevi. Posso até contra-argumentar, mas a crítica fundamentada não será objeto da minha ira. Ainda sobre mim, como autora, mesmo que eu discorde muito do que um determinado crítico disse a respeito de um trabalho meu, não será admissível que eu mobilize minha minúscula rede seguidores (os que forem acéfalos) para intimidar, ameaçar e agredir o crítico e seus familiares. Esse tipo de atitude deve ser objeto de investigação criminal. Contudo, se a crítica é estruturada sem que se faça uma leitura profunda da obra, sem que haja argumentos honestos e respeitosos (não aceito que uma crítica me ridicularize) que demonstrem como e porque o texto é ruim, eu me insurjo. Não aceito piadinhas, comentários irônicos de quinta categoria, achismos, julgamentos ideológicos e pirotecnia verbal lacradora em cima do meu trabalho sério e intelectualmente honesto.
AGUALUSA: Parece que qualquer crítico que se atreva a resenhar desfavoravelmente os livros de Itamar passa a ser automaticamente um "branco racista", independentemente da sua origem étnica. Você quer ser branco? Então, critique o Itamar! Falando sério: essa atitude incomoda-me por vários motivos. Primeiro, acho uma ofensa a todas aquelas pessoas que enfrentam situações de racismo. O racismo é um problema real. É uma dor real. Não se pode minimizar esse problema, particularmente no Brasil, um país onde a maioria das pessoas têm origem africana, mas que continua sendo governado por uma minoria de pessoas de origem europeia. Os brasileiros "brancos", ou seja, que são vistos como "brancos" pelos restantes, detêm não só o poder político, mas também o poder econômico e cultural. É isto que tem de mudar. Em primeiro lugar, o Brasil precisa se descolonizar. Por outro lado, a atitude de Itamar me incomoda, porque é uma tentativa descarada de silenciar qualquer voz crítica. Todas as tentativas de silenciamento me incomodam. Finalmente, aquilo foi mais um linchamento virtual, por parte de uma pessoa com enorme poder -- o próprio Itamar --, contra alguém sem poder algum. Dito isto, acho importante acrescentar que vivi o sucesso de Itamar com enorme alegria, e, dentro das minhas escassas possibilidades, tentei contribuir para o mesmo. Porque, enquanto leitor, o primeiro romance dele foi para mim uma belíssima surpresa.
TAB: A escolha de críticos literários deve ser pautada pelo racialismo? Ou seja, assim como o mercado editorial criou um nicho para autores negros, deve dar voz a críticos literários negros e só a eles permitir a análise crítica de obras de seus pares? Por outro lado, isso não acontece há décadas com autores brancos? Não há um certo compadrio desses com os críticos em geral?
CIDINHA DA SILVA: São várias perguntas, vou desmembrá-las para responder.
DESMEMBRAMENTO 1: “A escolha de críticos literários deve ser pautada pelo racialismo”? Ou seja, assim como o mercado editorial criou um nicho para autores negros, deve dar voz a críticos literários negros e só a eles permitir a análise crítica de obras de seus pares?
CIDINHA DA SILVA: Racialismo não é uma palavra do meu léxico, responderei utilizando termos da minha gramática. Sobre o mercado editorial e o tal nicho criado para a autoria negra, veja como o tom da sua afirmação a inferioriza. Ele denota que não teríamos conquistado esse espaço por qualidade estética, mas porque somos negros e o mercado criou esse nicho para nós, sabe deus porquê. A premissa do seu raciocínio é errada e tendenciosa, portanto, não tenho condições de acompanha-la. Os críticos literários devem analisar as obras com honestidade, conhecimento técnico e respeito a quem a produziu. A crítica deve ser feita com profissionalismo.
DEMEMBRAMENTO 2: Por outro lado, isso não acontece há décadas com autores brancos?
CIDINHA DA SILVA: O que acontece há décadas com os autores brancos? Eles serem criticados por seus pares brancos e muitas vezes de maneira condescendente? Sim, isso acontece há séculos.
DESMEMBRAMENTO 3: Não há um certo compadrio desses com os críticos em geral?
CIDINHA DA SILVA: Compadrio dos autores brancos com os críticos brancos? Sim, acho que sim.
TAB: A necessidade (inquestionável) de visibilização e reparação das maiorias minoradas pode levar a distorções, impondo aos críticos um olhar condescendente em relação a autores e a obras que nem sempre apresentam a excelência estética geralmente reconhecida por esses profissionais da reflexão crítica. Como lidar com esse impasse?
CIDINHA DA SILVA: Repito: Os críticos literários devem analisar as obras com honestidade, conhecimento técnico e respeito a quem a produziu. A crítica deve ser feita com profissionalismo.
Comentários