Ataques ao Jongo e ao Samba

(Por:* Raphael Salomão Khéde, especial para o blogue). No dia Nacional do Samba,02/12/08, o RJTV cometeu várias gafes: a primeira foi a de ter falado em supostos “netos de yorubanos do Congo” que teriam fundado o samba e que ”o samba era objeto de perseguição policial, mas a Tia Ciata tinha a fachada da religião que a protegia, porque o culto religioso era permitido. Então, ela usava essa fachada da religião para permitir que na parte de trás do seu terreiro se fizesse o samba”, explica a historiadora Raquel Valença.(ver http://rjtv.globo.com/Jornalismo/RJTV) . Se ainda hoje o tratamento reservado às religiões afro-brasileiras é desrespeitoso e agressivo, como é possível que um século atrás elas fossem permitidas? Não faz muito tempo que uma mãe-de-santo baiana morreu de ataque cardíaco, como decorrência da deturpação violenta dos rituais de sua casa, divulgada em folhetos apócrifos por correntes evangélicas. Um dia antes do famoso Dia Nacional do Samba, esse mesmo noticiário citou com muita ênfase, alegria e entusiasmo, a comunidade da Serrinha (Madureira, Zona Norte do Rio de Janeiro) como berço da Escola de Samba Império Serrano. Mas esqueceu de noticiar um fato bastante grave ocorrido na comunidade. Na cotidiana guerra do Rio, à qual todos nos acostumamos, a polícia invadiu a Serrinha, matou dois “bandidos” e destruiu a sede do Jongo da Serrinha. O Grupo Cultural Jongo da Serrinha foi fundado há cerca de 40 anos pela lendária Vovó Maria Joana Rezadeira e por seu filho, Mestre Darcy do Jongo. Ao perceberem que o último núcleo de jongo da cidade do Rio estava se extinguindo, Mestre Darcy e sua mãe resolveram levar a dança de roda praticada nos quintais, para os palcos. Criaram um espetáculo como estratégia de divulgação do ritmo e quebraram tabus: permitiram a entrada de crianças e jovens na roda, antes reservada somente para os mais velhos, e acrescentaram instrumentos de cordas no jongo. Atualmente, as apresentações do Jongo da Serrinha são lideradas por Tia Maria do Jongo, fundadora do Império Serrano e jongueira mais antiga do grupo, com seus 88 anos (ver /www.jongodaserrinha.org.br). Fiquei chocado quando soube: conheço a sede, conheço as pessoas do Jongo, Tia Maria e a comunidade que foi a última a preservar a dança ancestral mais bonita que o Rio de Janeiro conheceu; uma escola aonde as crianças aprendem aquilo que a televisão e a escola nunca lhes ensinará, aprendem aquilo que seus pais, avós e bisavós cultivaram com resistência, aquilo que poucos conhecem e valorizam como realmente mereceria. E agora, esse fato truculento. Pergunto-me se perdemos a capacidade de reconhecer a superação dos limites impostos pela violência e pela injustiça social; pergunto-me se ainda temos senso crítico e coragem para denunciar seja lá onde for (trabalho, família, na rua, etc.) o que estamos nos acostumando a considerar "normal”, "cotidiano”, ”coisas que acontecem". O termo Jongo (que chegou ao Brasil através dos Bantu da área que hoje corresponde ao Congo e Angola) designa a música e a dança que se praticam através do ritmo de dois tambores: um menor, o Candongueiro, e um maior, o Angomapita (ou Angoma-puita ou Tambu). Em algumas comunidades do interior de Minas, do Rio ou de São Paulo, esses tambores, vêm do tempo da escravidão, e eram feitos artesanalmente, escavados na madeira. Cria-se uma roda, de noite até o dia raiar, e duas pessoas entram para dançar no meio da roda, todos descalços; tem uma só pessoa que canta os pontos, às vezes em forma enigmática ou de adivinhação; e apenas uma deve responder, caso contrário podem acontecer várias coisas inesperadas. Crianças não entravam na roda e, muitas vezes, na época da escravidão eram organizadas fugas e revoltas através das letras misteriosas do Jongo, que os senhores não podiam entender. Tudo isso nos foi relatado pelos mais velhos que diziam que o Jongo “tem dendê” e “que Tambu (outra forma de designar o Jongo) “é de Deus”. Muita coisa mudou de lá pra cá, mas muitas também permanecem nas lembranças de pessoas que viveram aquelas experiências e ainda estão vivas. O Jongo permanece vivo através delas como Patrimônio Cultural Brasileiro (Bem Imaterial do Estado do Janeiro registrado pelo Iphan em 2007). Mas sabemos muito bem que o termo exato para definir como foi tratada a cultura negra no Brasil é espoliação. Assim foi feito com a literatura, com a religião e, agora, com o Jongo. Já passou o tempo de ficarmos calados e defender nossas raízes só em momentos agradáveis, em festas, e nos esquecermos das mesmas no dia-a-dia.Práticas culturais como o Jongo devem fazer parte da realidade de qualquer brasileiro e ser respeitado como tal,como é respeitado o Natal(árvore móvel na Lagoa), a novela da Globo e por aí vai: por que dois pesos e duas medidas? Chega de hipocrisia, chega de subalternidade e "jeitinhos" complacentes e "gentilezas" disfarçadas que amenizam a tremenda guerra racial, social e econômica que o Rio vive. (*Raphael é mestrando em Literatura Brasileira na Uerj,estudioso da obra de Pasolini e João Antônio).

Comentários

Mari Labaki disse…
Olá Cidinha,

Que bom que postou esse texto. É bom saber mais detalhes de quem conhece o lugar e as pessoas... apesar , muito apesar, da tristeza que o conteúdo tras.

Abraços.

Mari Labaki.

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