Resenha de Ricardo Riso sobre Oh, margem! Reinventa os rios!, de Cidinha da Silva

Por Ricardo Riso

Cidinha da Silva – Oh, Margem! Reinventa os Rios! 
 

 Atentar o olhar para vivências, personagens e fatos foi uma tarefa que grandes nomes da literatura brasileira propuseram-se, dentre tantos, autores do porte de Machado de Assis e Lima Barreto que desafiaram a inércia de um suposto bem-estar do mundo patriarcal e branco, responsável por acobertar as tensões raciais, políticas e econômicas de seu tempo e a hipocrisia das vozes dominantes. Expor o dia a dia por prismas distanciadores da estética- ideologia do plim-plim revela o intransferível desejo de ter o “direito a significar” das vozes subalternizadas, espaço que intelectuais negras e negros encontram no ato da escrita.

A escritora e ativista mineira Cidinha da Silva destaca-se por ter esse olhar acurado, sensível para detectar e confrontar os leitores para os ardis do cotidiano, principalmente no que diz respeito a negras e negros em meio a um sistema racista consolidado e repleto de dissimulações. Por isso, o interesse crescente durante a travessia das páginas do livro “Oh, Margem! Reinventa os Rios!” (Selo Povo, 2011) e suas crônicas, em sua maioria curtíssimas, revelando domínio de concisão para apresentar suas ideias, muitas vezes incomodar, mas sobretudo encantar. Sendo assim, resolvi destacar três eixos para apresentar de forma breve esta obra: a memória, o racismo e a inserção de negras e negros na universidade.

Memória
Para além de desvendar o cotidiano, a crônica, e Cronos está sempre pronto a nos devorar, tem o compromisso de resgatar fatos da memória, da memória afetiva daquele que se propõe a escrever. Revisitar o passado, narrar acontecimentos tão comuns à comunidade negra e sua luta diária de dificuldades financeiras apresentam-se com inegável ternura logo na abertura do livro, na crônica “Construção”. Nesta, a narradora revela as obras ocorridas na casa de uma criança, desde a troca do piso da casa à mudança para azulejos da cozinha, passando pela colocação de tacos nos outros cômodos, tarefas que sempre contavam com a participação dos pequenos, até o mutirão para construção da laje.
O dia de bater laje, propriamente, começava de madrugada. A rapaziada ia chegando, alguns acompanhados das esposas, talvez uma ou outra noiva, namorada, doida para mostrar serviço e ser acolhida no clã. A filharada também vinha e os pequenos podiam brincar. Aos adolescentes eram destinadas algumas tarefas distribuídas por sexo. Basicamente, mulheres de todas as idades na cozinha e homens e homenzinhos nas várias tarefas de preparação da laje (...) (p. 16)

Assim, a narradora aproveita para tecer considerações acerca dos papéis muito bem definidos dos gêneros, trata dos assuntos de homens e mulheres, e de como a união e a confraternização se dão entre as famílias negras, sem deixar de mencionar assuntos sérios e ainda recorrentes como o trabalho infantil, com sutileza que não deixa de ser ferina: “[Ele] contava orgulhoso que aos 9 anos, quando primeiro assinaram sua carteira de trabalho fora como assentador de tacos, na firma do seu Pacífico. Por aí o filho constatava a modernidade de certos conceitos. Trabalho infantil, por exemplo, na época do pai não existia” (p. 13).

A memória afetiva e minuciosa é retomada em “Honoris Causa” ao retratar a avó, Doutora Mundinha, e as mudanças trazidas pela modernidade ao local onde vive. Mais uma vez, a sutileza para descrever o cotidiano de dificuldades e o quanto o acesso à educação era restrito à população negra, uma vez que a avó era uma das raras pessoas que sabia escrever, ainda que uma escrita repleta de oralidade:

Quando os mercados começaram a se instalar na região, substituindo as vendinhas onde o povo comprava à base de anotações na caderneta, era chique chegar ao local com uma lista de compras, mesmo tendo todas as necessidades decoradas, o dinheiro contado e a falta de leitura.
Minha avó era requisitada para escrever as listas e atendia com gosto: quatro latas de oliu, seis pacotes de banha de porco, para misturar e render o mês todo. Três pacotes de cinco quilos de arrois (...) (p. 71)

De grande valia para destacar a contradiscursividade da autora ainda no campo da memória são as cinco crônicas da série “Cenas da Colônia Africana em Porto Alegre” (p. 80 a 101). Como “a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos” (POLLAK, p. 205), nada mais provocador que manifestar a presença negra no Rio Grande do Sul. Nestas, são demonstrados os agitos para organizar os desfiles dos blocos de carnaval (“Carnaval”), a expectativa gerada pelos bailes na Colônia Africana (“Os bailes”), a descrição detalhada das tarefas das lavadeiras (“As lavadeiras”), e a presença da religiosidade afro em “A benzedeira” e “Povos de Santo”, na qual apresenta as várias casas de santo e afirma que “as Casas de Nação sempre existiram na Colônia e nos outros lugares todos onde viviam os pretos” (p. 86), assim como a popularidade de suas líderes retratada em um enterro: “A Brigada Militar estima que mais de duas mil pessoas acompanharam a cerimônia fúnebre de Mãe Apolinária” (p. 85). O conto também revela as negociações aos quais os negros são obrigados a fazer para preservar a sua religiosidade:

Nos anos 1940, os toques nas Casas de Nação tinham de encerrar às dez da noite. Nas terreiras das tias Bibica, Tomásia, Sebastiana e Esperança, muita coisa foi quebrada, e gente apanhou à beça. (...)
Contam que na casa de dona Apolinária, quando os brigadinos chegavam para interromper o batuque, os cavalos empacavam. (...) O canto dos praticantes amolecia o coração dos soldados que, ao invés de parar o toque, ficavam assistindo às cerimônias. Alguns deles, é bem verdade, tinham relações familiares com os batuqueiros. Aí o pessoal das Casas ia estendendo o tempo em cada sessão até avançar na madrugada. Isso começou na casa da Mãe Apolinária e, aos poucos, foi chegando às outras. (p. 87)

São essas as negociações as quais as comunidades negras em diáspora precisam manter para sobreviver em sociedades que a reprimem, sendo necessário reinventar formas de resistência. Das pertinentes considerações à religiosidade para algo que causa indescritível apreço para os que desejam preservar ídolos negros. Dessa maneira, temos várias crônicas que homenageiam ídolos negros, configurando-se numa galeria de personalidades negras. As crônicas destacam agentes de diversas áreas, negros brasileiros ou da vasta diáspora, tais como o jogador de futebol Reinaldo, ídolo do Atlético-MG nas décadas de 1970/80, os cantores Wilson Simonal de Castro em crônica homônina, Evaldo Braga e Fela Kuti, e o artista plástico norte-americano Jean-Michel Basquiat, e da escritora Maria Tereza em singela homenagem na crônica “Luli Arrancatelha...”. Mais que necessária, as linhas traçadas a esses agentes da cultura negra mostram a diversidade da atuação de negras e de negros, apesar do ostracismo e da estereotipia que os meios de comunicação tradicionais tentam impor-lhes.

Racismo
Dentre vários momentos das crônicas nas quais as tensões das nossas relações raciais aparecem, destacamos a maneira que um personagem, torcedor do Atlético-MG, passa o dia assoviando o hino de seu clube para desgosto e ódio do patrão, infeliz com a vida que levava: “Eu sou um fracassado! Não consegui nada na vida. Vou terminar meus dias como meu avô. Uma lojinha de tecidos na Lagoinha e um funcionário preto-encardido vestindo uma camisa surrada do Atlético, entupindo meus ouvidos com o hino do time” (p. 22).

Tal postura conduziu-o a uma crise hipertensiva. Quando o patrão retornou do hospital, ainda muito convalescente, o rapaz resolveu desligar-se da empresa e dirige-se a ele:

O Vilson trocou de roupa antes do horário do ponto. Juntou os trens dele, a garrafa térmica, a marmita, o vidrinho de pimenta malagueta, mais uma ou outra coisinha sua, arranjou tudo dentro da mochila. Puxou uma cadeira, sentou, não desviou os olhos do assustado seu Scliar. Assobiou o hino do Atlético, inteirinho. Na hora do “galo forte, vingador”, pegou a carteira de trabalho no bolso da calça e deixou sobre o balcão. Foi embora. (p. 22)

De forma simples a personagem negra oferece a sua resposta para a covardia do racismo, assim se dá a sutileza que perpassa as crônicas de Cidinha da Silva. Por outro lado, nem sempre os negros conseguem enfrentar o sistema racista e manter-se bem. Temos plena consciência que autoestima elevada de um cidadão negro não agrada à ordem hegemônica brancocêntrica, pois fere os códigos racistas de subalternidade e subserviência. Não sendo assim, “um negro sabedor de si incomoda muita gente. Se, além disso, for sofisticado, incomodará muito mais” (p. 29), caso de “Wilson Simonal de Castro” (p. 28-30), o grande cantor que arrebatava multidões nos anos 1960. E muito bem citado na crônica, tal postura era (é) indiferente à orientação política: “um preto mascarado, incomodará ainda mais. À direita porque domina a massa, à esquerda porque diverte a massa” (p. 30). O grande astro Simonal, deslumbrado com o próprio sucesso, caiu no ostracismo e jamais se recuperou: “A vida não foi suave contigo, Simonal. Mas você também errou, meu rei! Sentou-se à mesa de garfo e era dia de sopa! Esqueceu-se de que era um preto reinando entre brancos” (p. 30).

Não menos surpreendente é a crônica “Ônibus especial” tendo como narradora uma patroa indignada com as reivindicações das atuais empregadas domésticas. Nesta, escancara-se a ausência de pudor e de manutenção das relações servis, praticamente escravocratas, casos das empregadas que são criadas pela família, afinal, “todo mundo respeita, porque é quase da família”. É com o sentido desse “quase” que mascara as práticas racistas enraizadas e naturalizadas no convívio brasileiro. Vejamos a postura da patroa:

Empregada do meu tempo só ia dormir depois de servir a janta, lavar os pratos e deixar a cozinha limpa. Aquelas, sim, eram empregadas boas. A dona Fátima, mesmo, almoçava de pé, com o prato em cima da pia. Para quê? Para deixar as mãos livres caso precisasse acudir minha mãe com os filhos pequenos. Empregada tinha compreensão. Hoje, elas querem sair cedo para estudar e deixar os patrões sem janta. (p. 56)

Bom, compreende-se tamanha revolta quando negras e negros reclamam e lutam por melhores condições de trabalho e condições dignas nos dias atuais. Não passa pela mente do mundo brancocêntrico ceder ou procurar negociar quaisquer alterações na sociedade.

Negras e negros na universidade
Eis aqui um ponto nevrálgico e que suscita habilidade constante de negras e negros que resolvem adentrar o meio acadêmico, espaço prioritário da elite branca e que gera grandes polêmicas e arroubos racistas desde que as leis de cotas passaram a ser implementadas nas universidades públicas, uma vez que “o lugar do negro na academia brasileira é quase o da absoluta ausência e negação” (LIMA, 2001, p. 284).

Apesar disso, a crônica “Solidariedade” termina com um final surpreendente e irônico após uma tentativa frustrada de aproximação entre duas pós-graduandas negras. Estão lá as considerações da narradora ainda que equivocadas diante do real motivo de distanciamento da outra personagem. Porém, são indagações que perpassam mentes de negras e negros quando enfrentam o território hostil que é a universidade, espaço não destinado para os que possuem melanina acentuada:

Poliana já havia tentado sorrir para a moça na fila do caixa, mas ela baixara a cabeça. As duas eram as únicas mulheres negras no ambiente, além das moças que trabalhavam na cantina, não havia por que não se entenderem.
Poliana fez a segunda tentativa. Olhava fixamente para a moça que percebia e desviava os olhos. Em segundos, ela fez a leitura sociológica da situação: pessoas negras que ainda não têm a força da consciência racial sentem-se mais protegidas quando se afastam dos outros negros e procuram se diluir no meio dos brancos. Coitada, como se existisse solvente tão potente para a negrura num ambiente racista. (...)
Poliana já imaginava a grande amizade que poderiam construir. (...) Achou de bom-tom perguntar algo sobre a moça. Pensou em abordar a timidez dela de maneira indireta, mencionando quanto certos espaços sociais pressionam os negros, inibem seu brilho, e a universidade seria um deles. (...) (p. 40-41)

Esse espaço inibidor que é a universidade para o pesquisador negro é desvelado em “Vocês não estão meu ouvindo?”, crônica que retrata uma reunião informal de professores universitários e os comentários sórdidos a respeito desse novo alunado que começa a frequentar os bancos universitários numa quantidade até então jamais vista. A crônica desmascara o pensamento de muitos, geralmente revelados em reprimendas, entre outras advertências aos quais os graduandos e pós-graduandos negros costumam ouvir. Acompanhemos a “fictícia” polifonia de opiniões dos professores:

“Você não acredita, teve um descarado que justificou a falta à aula no dia da entrega do último trabalho porque a casa dele alagou na chuva.” Outro professor pergunta: “E o talzinho ficou em casa tirando água?” Uma professora completa: “Não, vai ver a casa dele desabou e ele não entregou o trabalho porque foi soterrado”. Risos gerais. Outra professora comenta, séria: “É isso que dá abrir a universidade para essa gente. Vocês repararam no cheiro, quando eles se juntam? E o susto de vê-los andando em bandos com aqueles cabelos? Eu, quando vejo um bando deles, tremo, acho que vai ter arrastão”. Risos gerais. “Não riam, não, é sério! São elementos de alta periculosidade, pelo menos a aparência deles e a dos bandidos é a mesma. Mas o professor está sujeito a tudo, e por essa miséria que a gente ganha.” Risos gerais. “É um tal de faltar à aula alegando não ter dinheiro para a condução. Não tem dinheiro, não entre para a universidade. Vá trabalhar, arranjar dinheiro. Mas não, o que eles querem é mamar nas tetas do Estado. Você falou do cheiro, mas e as roupas, e os chinelinhos? Meu Deus, compram roupa à baciada, na esquina dos aflitos.” Mais risos. (p. 45-46)

Ainda que muitos busquem o embranquecimento, qualquer universitário negro sabe que é um agente desestabilizador de um espaço concebido para jovens das classes A e B; a cor, desnecessário mencionar. Evidencia-se o quão hostil é a inserção do universitário negro no meio acadêmico. A tão propalada diversidade fica apenas no campo discursivo, pois quando as diferenças marcam presença, exalam um odor desagradável. Por isso, a importância do universitário negro estar atento aos embates dessa arena que ele(nós) desconhe(cemos).

Concluindo...
A partir do momento que a voz do subalterno rompe a condição do silêncio, novos prismas são engendrados tornando-se sujeito do discurso, dilacerando certezas da ordem vigente patriarcal e branca. Para além do aqui exposto, as crônicas de Cidinha da Silva apontam para o homossexualismo masculino e feminino, questionam a representação da sexualidade exacerbada da mulher negra e a hipocrisia da sociedade estarrecida com uma família branca completamente fora do seu lugar ao viver na mendicância, assim como os desejos de consumo inatingíveis para jovens negros, entre outros assuntos inseridos no decorrer das crônicas. O texto de Cidinha atinge o cânone literário, é transnegressor no sentido de buscar uma dicção própria dentro da literatura negro-brasileira, ao procurar tratar as tensões raciais com sutileza, conseguida em vários momentos. É um prazer ler Cidinha da Silva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AUGUSTO, Ronald. Transnegressão. In: PEREIRA, Edmilson de Almeida (Org.). Um tigre na floresta de signos – estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010. pp. 425-437
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.
LIMA, Ari. A legitimação do intelectual negro no meio acadêmico brasileiro: negação de inferioridade, confronto ou assimilação intelectual? In: Revista Afro-Ásia 25-26, 2001, pp. 281-312.
POLLAK, Michael. Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.

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