A minha alma está armada e apontada para a cara do sossego, pois paz sem voz, não é paz, é medo!

Por Cidinha da Silva para as Blogueiras Negras
A idéia deste texto é abordar o atual cenário das manifestações políticas por direitos, especialmente pelo direito à cidade, a desfrutar a cidade, que tomaram conta do país no mês junho de 2013, com foco mais detido em São Paulo, e que tem sido noticiado pelo filtro da Internet, para abordar o alcance dos direitos humanos na promoção da equidade racial na atualidade.
Este breve texto, então, responderá à pergunta “Onde estavam os jovens negros paulistanos enquanto acontecia o 5º ato do MPL – Movimento do Passe Livre de 17 de junho e durante os 4 anteriores?” A demarcação da data contempla o momento em que as manifestações públicas por direitos, ocorridas no centro da cidade, começaram a ser tumultuadas e tomadas por uma moçada direitista-perdida e outra parcela direitista nazi-centrada, descaracterizando o caráter progressista e emancipatório das manifestações.
Algumas dezenas de jovens negros estiveram diluídos nas manifestações como jovens insatisfeitos, agregados ao MPL, mas sem um demarcador racial em sua atuação e reivindicações.
Estiveram presentes nas declarações politizadas, mas não racializadas de Paíque Duques, estudante da UnB, negro, representante do MPL de Brasília, a fala mais articulada do Movimento no sentido de que as cidades devem servir às pessoas comuns e não aos empresários e ao capitalismo.
Muitos jovens negros pobres que estudam em boas universidades ou os parcos negros de classe média que têm consciência racial optaram por não estar nas manifestações porque estavam ocupados em construir lugares sociais melhores, mais qualificados para representar a juventude negra.
Foram diversas as declarações de jovens negros afirmando que não estavam nas ruas porque estavam trabalhando, estudando, e esta era sua intervenção pública por um mundo mais igualitário. Além disso, já se sentiam representados pelos milhares de negros jovens depositados nas ruas como usuários de drogas, principalmente do crack, moradores de rua, crianças e adolescentes abandonados à própria sorte. A maior parte do pessoal nessa situação é negra, a equidade racial e os direitos humanos dobram a esquina antes de notar que eles existem.
Respondendo à pergunta, dois mil jovens negros estavam mortos – a equidade racial passa ao largo do pertencimento racial dos mais de dois mil corpos amontoados no IML, nos cemitérios de bairro, só em 2012. Aqueles cemitérios, cujos funcionários nos dizem que o número de mortos noticiado pela imprensa para se aproximar do real deve ser multiplicado por 5 para alcançar o número real de mortos enterrados como resultado de conflitos armados.
Assim, se as estatísticas oficiais falam em 2.000 jovens mortos pela violência (policial, majoritariamente) nas periferias e favelas de São Paulo ao longo do ano que passou, podemos pensar em 10.000, sem pudor. Ali, nas gavetas do IML e nos cemitérios das periferias, todos são negros, ou quase negros, de tão desamparados, embora a política de direitos humanos, de um modo geral, considere-os apenas como jovens mortos nas bordas de São Paulo.
Outros milhares estavam presos em casa por falta de dinheiro para pagar o transporte público, não tinham sequer ido à faculdade naqueles dias por falta de dinheiro para se locomover, aqueles 3,00, antes do aumento de 70 centavos, considerado mísero por muitos.
Não tinham 9,30 para usar dois metrôs e dois ônibus-integração antes do aumento para ir àquela faculdade particular, de mensalidade relativamente baixa, estrategicamente plantada em pólos geográficos de mais fácil localização e grande afluência de pessoas nas periferias da cidade, na qual eles conseguiram uma vaguinha graças ao PROUNE, muito menos 10,00 depois do aumento de 20 centavos na passagem principal (3,00 para 3,20) e 15 na integração (1,65 para 1,80) para participar das manifestações. Sim, existe gente que conta centavos para viver e para estas pessoas, 70 centavos acrescentados ao transporte diário fazem muita diferença. Ah... não considerei neste cálculo as pessoas que usam trem / metrô e ônibus diariamente. A essas só resta mesmo dormir em pé no trem enquanto se locomovem para o trabalho e quando voltam dele.
Por precaução, muitos jovens negros ficaram em casa, impelidos pela consciência de que aquelas eram manifestações adequadas a pessoas que têm direitos humanos, sabem o que é um advogado e podem contratá-lo, para as quais há também os advogados solidários, além do sobrenome de família que pode tirá-las rapidamente das prisões arbitrárias.
Os meninos e meninas negros têm medo da polícia que neles atira para matar com balas de verdade, não fazem covardia apenas com balas de borracha, gás lacrimogênio, spray de pimenta e bombas de efeito moral. Com eles os policiais fazem apostas de tiro ao alvo, matam a baciada, como vemos agora no Complexo da Maré, 11 mortos oficiais na primeira noite de invasão do BOPE, da chacina promovida pelo braço armado do Estado e protegida pelo racismo institucionalizado, internalizado, que anestesia as pessoas do bem que não esperneiam o necessário para defender os moradores de favela.
A moçada negra passava pelas laterais das manifestações buscando a proteção da multidão no transporte público, pois sabem que a polícia não lhes dará a chance de clamar por direitos humanos quando forem enquadrados. Para um menino preto, a polícia não diz como diz a um menino branco, de classe média, solidário aos manos e manas da periferia, quando este reivindica direitos: “o que foi playboy? Ta achando que ta nos jardins?” Não, a polícia não diz isso, ela atira antes que os meninos esbocem qualquer reação verbal. Eles sabem disso e se protegem como podem.
A juventude negra está por demais enredada nos processos de gentrificação que ocorrem nas favelas e vilas próximas aos grandes centros urbanos e/ou locais desejados pela especulação imobiliária, que remove suas casas por valores irrisórios e os expulsa para locais pelo menos 50 Km distantes da moradia original.
Fazem-se presentes pela ausência de enunciação no texto dos analistas de esquerda, progressistas, humanistas, ambientalistas que continuam citando os negros como leve dimensão de diversidade da abordagem, às vezes até conseguindo a proeza de não relacionar a situação deles ao racismo estrutural e institucional que os alija de tudo e os localiza em posições de destaque no ranking das desigualdades. Continuamos nós, analistas negros, os chatos e chatas de plantão, solitários na amazônica tarefa de insistir na dimensão estruturante e institucional do racismo na produção das desigualdades verificadas na sociedade brasileira.
As jovens e os jovens negros começaram a aparecer quando as manifestações passaram a ocorrer nas quebradas, no Campo Limpo, na Brasilândia, em Itaquera, bairros periféricos de São Paulo. Quando desceram da favela para o asfalto, como no caso da Maré, no Rio de Janeiro. Quando fizeram a Revolta dos Turbantes, manifestação de jovens intelectualizados e ativistas do Movimento Negro, também no Rio de Janeiro, liderada por jovens mulheres negras.
Parece-me haver um único desafio para que os direitos humanos sejam capazes de promover a equidade racial, quer seja, assumir a dimensão estruturante e institucional do racismo brasileiro. Isso significa deixar de nos verem e posicionarem como apêndice colorido (no sentido do entendimento de senso comum da raça, não no sentido da luta LGBT) e passarem a olhar o mundo, pelo menos o brasileiro, em sua dimensão racial.

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