DA SILVA, Cidinha. #Parem de nos matar. São Paulo: Editora Ijumaa, 2016.
Luís
Carlos Ferreira[1]
O
livro #Parem de nos matar!, da pensadora e dramaturga Cidinha da Silva,
publicado pela editora Ijumaa, em 2016, é uma obra que coloca o racismo para
tremer e nos convoca para uma ação de justiça com graça, insubmissão e beleza.
A
autora, de maneira cuidadosa, nos mostra que o racismo nos golpeia em diversos
âmbitos. É um livro de crônicas do “Pensamento do Tremor”, em alusão ao termo
de Édouard Glissant, pois o racismo estrutura a vida:
a política, a estética, a epistemologia.
E
assim, o livro trata de questões que nos reúnem num
turbilhão de percepções, sensações e compreensões, tais como, o genocídio
da juventude negra, a resistência das mulheres negras, o racismo nas mídias e futebol, intolerância religiosa, homofobia, ódio, dor, lembrança, morte, saudade, utopia, encontro, liberdade e
beleza. O “grito aberto” de #Parem de nos
matar! evidencia o problema crucial da obra, a morte física e
simbólica da população negra. A beleza
de #Parem de nos matar! golpeia e não
foge.
O
livro tece em sua construção a ética, pois se ocupa das vidas negras combatidas
e aniquiladas nas suas mais diversas esferas, e a política, evidenciada em uma
necropolítica, conceito cunhado por Achille Mbembe. Uma política de morte
construída e elaborada contra as vidas negras linchadas em praças públicas. Como
afirma Cidinha da Silva “No mundo real, entretanto, eram sempre negros os alvos
dos linchamentos. Qualquer motivo, qualquer suspeita, qualquer vacilo diante
das regras do establishment justificava a eliminação física do suspeito”
(SILVA, Cidinha, 2016, pag. 22). Esta eliminação é possível por causa de uma
sensibilidade educada pelo racismo. Desta maneira, adentramos em uma outra esfera,
a da estética, também presente no livro.
A
estrutura das crônicas constrói uma rede
semiótica do racismo recente na história do país, que age, por exemplo, na política de segurança pública (na ação
sistemática da polícia), na programação cotidiana da televisão (a qual age de
maneira direta na produção do imaginário), na estrutura do futebol (aqui também
o machismo), no cenário político recente do golpe parlamentar ocorrido contra o
governo Dilma Roussef e na unidade latino-americana sem negros.
As
crônicas, por conta da sua força, beleza, ironia, graça e assertividade,
apresentam a possibilidade de encontrar caminhos para a liberdade. O
protagonismo de justiça e construção de liberdade é traçado nas crônicas: “Marcha do
Orgulho Crespo + Marcha das Mulheres Negras”, “Marcha das Mulheres Negras 2015”
e na crônica “Obrigada, Luíza Bairros! ” que tem um tom construído numa beleza tocante. “O nome Luiza Bairros
reverbera em nós como sinônimo de esmero, dedicação, seriedade, compromisso,
consequência, solidariedade e amor pelo povo negro do Brasil, da Diáspora e de
África. Em nome desse amor ela entregou a vida a uma causa, a luta diuturna
contra o racismo e pela promoção da humanidade das pessoas negras”. (SILVA,
Cidinha, 2016, pag. 61). E segue a cronista: “Agora é o tempo do descanso, de
aposentar o machado. O tempo da pedra silenciosa que se desfaz em barro. Tempo
de volta a Terra. À água. Ao sal! Siga em paz, Luiza, tão querida. Zaambi ye kwatesa!”
(SILVA, Cidinha, 2016, pag. 64).
“Obrigada,
Luiza Bairros!” é disposta após as crônicas
que problematizam o extermínio da juventude negra no Brasil e na Nigéria. Nesta
última, a autora faz uma reflexão acerca de um atentado sofrido pela França e a
reação que este provocara em relação ao terror sofrido por jovens na Nigéria.
Assim, ela nos diz: “Na Nigéria, 276 Meninas sequestradas, 2.000 mortos em
Baga. E o olhar do mundo fixado em um atentado na França.”. É possível perceber
uma outra categoria importante para o entendimento da construção do livro, o
espaço, o abismo entre eles. Os espaços construídos pela “efabulação e
enclausuramento do espírito”[2]
realizado pelo truque semiótico do racismo. Enquanto o mundo se sensibiliza com
um atentado na França, na Nigéria existe uma produção espacial da morte.
A
primeira crônica dialoga com a segunda, que, por sua vez, dialoga com as
demais, pois ao negar o signo África representado pela Nigéria, legitima-se “O
recado dos linchamentos”, assim como “A execução
sumária é legitimada como gol de placa no campeonato de extermínio da juventude
negra”, “Nazis soltos! Rolezinhos no corredor polonês”, “Política de
confinamento x direito à cidade”. O genocídio da juventude negra está ligado à
tríade ética-política-estética e ao semiocídio
do continente africano e os seus arquipélagos. A autora enfatiza a relação
entre África e Brasil, em relação ao genocídio da população negra. “E por que
havemos de nos importar com o número de mortos entre os africanos? Com as 276
meninas negras sexualmente escravizadas? Com os 82 jovens negros mortos por dia
na guerra civil do Brasil?”. (SILVA, Cidinha, 2016, p.20).
O
estado de exceção é a regra para a juventude negra no Brasil, principalmente
nos espaços geográficos de Amarildo Dias de Souza, Cláudia Silva Ferreira, os
“111 tiros disparados contra cinco jovens negros desarmados dentro de um carro”
no Morro da Lagartixa; os doze do Cabula, em Salvador; Kaíke Augusto, morto
em São Paulo, cuja morte evidencia a homofobia, além
do racismo. São casos que atestam que a
vida negra é uma “vida nua”, nos termos de Agamben, nos mais diversos espaços
brasileiros. “Ou alguém ousa negar que a vida desses garotos não tem valor
porque são vidas de negros?” (SILVA, CIDINHA. 2016, p.35). O racismo cria a
linha tênue entre aqueles que irão viver e os que vão morrer. Entretanto, “a
morte de negros pelo arbítrio policial não tem sido considerada assassinato”. (SILVA,
CIDINHA, 2016, p.38).
O
assassinato das vidas negras ocorre de diversas formas, seja física, como
discutido, e epistemológica, onde ocorre o assassinato das maneiras de conhecer
e agir, ou simbolicamente, no aniquilamento da existência da pessoa negra do
imaginário cultural brasileiro, onde se configura a
tentativa de apagamento da presença de artistas negros e negras no espaço da
mídia. Essa discussão pode ser notada na crônica “Antônio Pompêo e o desejo
cerceado de ser artista pleno”. Ainda no universo da televisão, a cronista traz
a reflexão de que as atrizes e jornalistas negras de destaque sofreram ações
machistas e racistas via redes socais: “O espírito dos ataques raciais à
jornalistas Maria Júlia Coutinho”. E a insistência da programação em reforçar
os estereótipos da pessoa negra, como destacado nas
crônicas: “Coração suburbano também fere e se locupleta da estigmatização das
negras” e “Rastro de Pânico do racismo Brasileiro”.
O
livro de crônicas trata de questões violentas, onde a “palavra seca”, mas a
autora com seu talento nos mobiliza para uma obra de muito movimento, onde
seguimos por meio de ventos, tempestades, raios, trovões e o grito de justiça: #Parem de nos matar! Em um assunto que diz
respeito à vida, a cronista guerreira joga com as imagens e nos convoca
para um território de luta contra o racismo.
Cidinha
da Silva também nos conforta durante essa deriva, quando evidencia na crônica
“Futebol brasileiro e ética”, a trajetória de
Leandro Damião e sua humildade: “Damião segue sendo um homem simples, pouco
afetado pelo glamour de boleiro bem sucedido”.
Finalizo
ressaltando a beleza dessa obra, apesar da aridez do tema, que pode ser
expresso na crônica “Alguma poesia para chamar o sol e saudar as águas”. Nela,
a autora procura um bote-salva-vidas para vencer o dia 17 de abril de 2016, o
dia da homologação do golpe contra Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados. E o
conforto de Cidinha da Silva foi com o livro “Correntezas e outros estudos
marinhos”, da poeta Lívia Natália. “Voltei à poesia para continuar viva”, disse
a cronista. E ela segue afirmando que “quando lemos boa poesia, somos tentadas
a poetar também”. A poesia é o lugar de conforto da cronista, é um dos
leitmotivs para a luta pela sobrevivência, para estar na resistência. Como
disse Édouard Glissant, “Toda poética é um paliativo para a eternidade”.
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