Branco sempre sabe quem é negro. Nós, negros, é que nos confundimos (e nos dispersamos)!
Por Cidinha da Silva
É sério mesmo que tem gente interrogando
a legitimidade da cantora negra Fabiana Cozza para ser uma das intérpretes de
Dona Ivone Lara no teatro? É sério? Não é fake?
Serão estas as pessoas que quando
precisam de uma cantora negra foderosa, de atributos técnicos e artísticos
inquestionáveis, disposta a entrar nos esquemas de brodagem, de cachê quatro
vezes menor do que uma artista do naipe de Fabiana Cozza costuma cobrar, ou até
mesmo sem cachê, procuram por ela? Afinal, Fabiana Cozza é um grande nome,
chama o público, credencia qualquer evento e, acima de tudo, é sista, “consciente
da causa”, cola com a gente na corda.
Será que nós que agora discutimos
a negritude de Fabiana Cozza o fizemos quando a expressão dessa mesma negritude
servia aos nossos interesses? Quando ela
se assumiu candomblecista, nós gostamos. Quando levou dezenas de artistas negros para o
palco porque são talentosíssimos, competentíssimos e invisibilizados ou
minimizados pela mídia hegemônica por serem negros, talvez tenhamos feito até
vista grossa, já que Fabiana não faz proselitismo de sua militância
artística em favor do povo negro, seu
povo.
Notem, não estamos falando de uma
alpinista racial. Estamos falando de Fabiana Cozza, alguém que nós, até ontem,
até antes do anúncio (feliz) de que interpretará Dona Ivone Lara no teatro, nós
a reconhecíamos como negra. Nós a convidávamos para nos representar. Nós nos
orgulhávamos de que ela nos representasse.
E Fabiana Cozza não é negra por
conta de sua comprovada militância artística em favor do artista negro, não por
isso. Há brancos que também o fazem e isso não os torna negros, em hipótese
alguma, mesmo que alguns achem. Fabiana é negra porque se identifica como
negra, é tratada como tal na sociedade racista brasileira e em outros lugares
hierarquicamente racializados do mundo, e porque tem uma história de vida
marcada pelo racismo na ponta de quem é alvejado por ele. Isso consubstancia
uma pessoa negra, não é? E lembro outra vez, até ontem não tínhamos dúvida
disso, depois do anúncio de sua participação no espetáculo que, para mim, foi
motivo de júbilo, passaram a questionar sua negritude.
Por óbvio que não estou aqui
esquecendo ou passando por cima dos aspectos cromáticos, da marca que as
quantidades de melanina imprimem nas relações raciais no Brasil, contudo, não é
disso que se trata nesse caso. Trata-se de deslegitimar uma cantora negra que
todo mundo reconhecia como negra, justo quando chega a um patamar que nos leva
a dizer “não, aí é demais. Ela não é tão negra assim, ainda mais se comparada
comigo que não estou ocupando o lugar dela”. Faremos o mesmo com Ana Maria
Gonçalves em algum momento? Quando deixar de ser interessante para nós, diremos
que ela “não é tão negra assim”? Minha questão é simples, por um lampejo de
coerência, Fabiana Cozza não pode deixar
de ser negra agora, se antes a víamos como negra.
Fico pensando se Clara Nunes estivesse
entre nós e fosse convidada a interpretar Dona Ivone Lara, ela não poderia? Se
Elizete Cardoso fosse a bola da vez, também, não? Escolhi essas duas cantoras
de propósito, não só pelo fenótipo, mas porque estão entre as maiores do Brasil
e para interpretar Dona Ivone, só cabem grandes cantoras negras, como elas,
como Fabiana Cozza. Além disso, além de cantar divinamente, é necessário também
saber atuar como atriz.
Aqui gente, para terminar esse
papo desterritorializado e torto, vou mandar um papo reto enquanto as convido para um chazinho de hortelã com
pão de queijo e biscoito de polvilho, vou perguntar uma coisa procês, na moral,
procês que são fãs enlouquecidas da Angela Davis. Se Angela Davis, a diva
bafônica, fosse cantora, assim, boa como a Billie Holiday, uma cantora negra
monstra, vocês deixariam que ela interpretasse Dona Ivone Lara no teatro?
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