Deu no Correio Braziliense


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Militante feminista Cidinha da Silva lança segundo livro de contos

'Um exu em Nova York', publicado pela editora Pallas, é o segundo livro de contos da autora mineira, ex-presidenta do Geledés e voz contundente da militância feminina negra



postado em 27/10/2018 06:30

Cidinha da Silva lança livro de contos no qual a ancestralidade dialoga com a materialidade da vida cotidiana(foto: Arquivo Pessoal)
Cidinha da Silva lança livro de contos no qual a ancestralidade dialoga com a materialidade da vida cotidiana(foto: Arquivo Pessoal)


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Uma moça espera parada numa esquina de Nova York. Faz frio, é inverno e ela usa um casaco fora de moda e sapatos de outono. Na cabeça, dreads. Outra moça, com um casaco mais fora de moda ainda, para ao lado, observa a outra e avisa: “eu tenho sapatos para você”. O encontro não tem nada de inusitado e foi o ponto de partida para Cidinha da Silva perceber que os contos escritos ao longo dos últimos anos continham um fio condutor para um livro. Assim nasceu Um exu em Nova York, publicado pela editora Pallas. É o segundo livro de contos da autora mineira, ex-presidenta do Geledés e voz contundente da militância feminina negra.

I have shoes for you, o conto da moça de sapatos de outono, é também a história de um encontro presente em praticamente todos os textos do livro, por isso foi fundamental para a autora decidir reunir os outros 19 textos. “Selecionei entre os contos já escritos aqueles que destacassem elementos de trânsito entre mundos, entre os planos material e espiritual, sobre ritualização do mundo da ancestralidade no cotidiano, sobre as dimensões oníricas que dialogam com a materialidade da vida. E também escrevi outros contos a partir de anotações guardadas, de observações novas, orientadas por essa perspectiva”, avisa.

 Livro 'Um exu em Nova York', de Cidinha da Silva(foto: Editora Pallas/Divulgação.)
Livro 'Um exu em Nova York', de Cidinha da Silva(foto: Editora Pallas/Divulgação.)

Os novos foram escritos entre 2017 e 2018 e Nova York entrou para o título como uma forma de provocação e brincadeira da autora. “Como megalópole, é símbolo da diáspora africana improvável (aos olhos leigos) para encontrar exus pelas ruas”, repara Cidinha. “Eu quis brincar com isso de uma maneira exúnica e mostrar que é totalmente possível. É só olhar com olhos de ver e estar atenta às manifestações múltiplas e cheias de maneirismos de Exu, o senhor da peripécia e do sentido diverso das coisas.” A entidade e sua encruzilhada é também um retrato do Brasil atual. Uma encruzilhada, segundo Cidinha, na qual a humanidade e seu legado de amor e respeito às pessoas e aos direitos humanos pode estar em vias de ser atravessada pela barbárie, pela maldade sem limites, pelo culto ao estupro e à tortura.

Tom lúdico

Exu está obviamente presente nos contos, assim como uma boa quantidade de entidades da cultura de matriz africana. Elas ajudam a dar às histórias um contorno poético e simbólico, mas também carregam algumas  preocupações de Cidinha. Ela não se diz mais uma ativista política porque, para isso, precisaria fazer parte dos coletivos.

“Sou escritora e tenho posição política, apenas isso. Entendo o ativismo como prerrogativa das organizações coletivas que realizam um trabalho hercúleo e amazônico em nossa defesa, em defesa da nossa humanidade”, diz a autora, que tem feito campanha dia e noite por Fernando Haddad (PT) e acredita em uma virada. “Me sinto em guerra, lutando com a espada de Ogum numa mão e o machado de Xangô na outra, com a adaga de Iansã entre os dentes e com a Generala Obá protegendo minhas costas. Estou em luta pela manutenção do pacto democrático.”

No Geledés – Instituto da Mulher Negra, que presidiu por 13 anos, Cidinha conta que aprendeu a fazer política de maneira conseqüente e responsável. Por lá, aprendeu também a ouvir e a enfrentar o racismo “com galhardia” e argumentos. “Geledés me ensinou a fazer o que deve ser feito, a despeito das minhas veleidades pessoais; me ensinou a cair de pé e atirando se a morte for inevitável”, conta. A literatura foi também um campo de aprendizado e, sobretudo, de fala. “A prosa poética é uma busca constante no meu processo de construção de linguagem. Escolher nomes para personagens é batizá-los, é vinculá-los a certas tradições, no meu caso específico, a tradições de matriz africana e ameríndia”, diz Cidinha.


Entrevista com Cidinha da Silva


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Você acha que a literatura feita por autores negros tem ganhado mais visibilidade? Como está esse campo na sua opinião?
Sim, estamos mais visíveis, mas ainda somos pensados como um bloco monolítico e colocados em caixinhas de um fazer literário sem nuances. Somos autoras e autores muito diferentes e assim precisamos ser vistos, lidos e estudados. Somos polifônicos e múltiplos, somos muitos e diferentes escritoras e escritores negros.

No prefácio, o Wanderson fala sobre o desafio de aprender a brincar com Exu nas encruzilhadas da vida. Em que encruzilhada nos encontramos, enquanto país e povo, neste momento? O que Exu pode fazer por nós?
Exu pode fazer tudo, desde que se recorra a ele com consciência e responsabilidade. Nesse momento, por exemplo, rogo a ele para que abra o canal de comunicação do campo progressista para levarmos aos corações, mentes e corpos das pessoas iludidas por uma proposta política autocrática, as dimensões reais da candidatura fascista e seus efeitos destruidores. Estamos na encruzilhada da humanidade e seu legado de amor e respeito às pessoas e aos direitos humanos, atravessadas pela barbárie, a maldade sem limites, o culto ao estupro e à tortura. São estradas muito nítidas e o nosso caminho precisa ser o caminho que louva e preserva a vida como valor divino e civilizatório.

O Brasil nunca fez a transição e a discussão crítica de seus erros enquanto sociedade. A abolição deu liberdade aos negros, mas não inclusão. Foi como se dissessem “ok, acabou, deixa isso pra lá e finge que não aconteceu”. O mesmo com a ditadura. Em vez de uma revisão crítica, houve uma lei de anistia. Por quê?
Trata-se de resposta complexa, talvez tenha a ver com a nossa tradição cristã de amortecer os conflitos e também de negá-los. Mais do que negar a existência da escravidão, a cultura brasileira tratou de romantizá-la, comparando-a a suposta maior crueza do modelo de escravização anglo-saxônico em contraposição ao modelo ibérico-português. Tão forte e destruidor quanto esta percepção é não reconhecer o racismo como algo estrutural na sociedade brasileira. A naturalização das práticas de discriminação racial por meio de piadinhas e tapas nas costas é algo que singulariza o racismo brasileiro frente a outros sistemas racistas no mundo.Deu no

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