O Homem azul do deserto: as múltiplas vozes enunciativas de Cidinha da Silva


                                                                                                                                                                                    Marcos Antônio Alexandre*
Há quem diga que a ginga é exúnica, talvez! Mas a quem Exú se curva senão a Oxalá e a Oxum, a mãe que o acolhe e guia? Não seria a ginga uma prática oxúnica, a partir da qual o capoeira (a mulher também) exuzilha o adversário? (“Ora iê iê ginga!”)
Ele não leu. Passaram-se uns segundos eternos de silêncio até que me desloquei para identificar a caixa da impressora. Esta lembrança aciona a casa do desassossego todas as vezes que alguém menciona o peso do conhecimento. (“O homem da mudança”)
Meu cliente, senhoras e senhores jurados, ao furtar três livros de ficção, em ato extremo de resistência ao nada que lhe é destinado pela vida, afirma que, de todas as mentiras empurradas pela garganta (da inexistência do racismo, da existência da igualdade, da justiça, do equilíbrio no julgamento do delito, do tratamento humano para seres humanos), a literatura é a mentira menos danosa. Por isso, peço sua absolvição. (“Ikú e o menino que furtava livros”)
O recado dado pelos assassinos de Marielle Franco é nítido: “se vocês dormirem pensando que são Marielle, acordarão como Cláudias, ou seja, às mulheres pretas nem nos damos o trabalho de ameaçar, nós matamos, principalmente aquelas que conheçam por dentro como operamos”. (“Somos todas Marielle”)

As tessituras crítico-narrativas de O Homem azul do deserto, de Cidinha da Silva, proporcionam ao leitor um mergulho no universo de suas crônicas-contos e sua multiplicidade de temas; característica estilística da autora que faz de seus textos um universo repleto de espaços de (e para) reflexões, de olhares críticos sobre a contemporaneidade e a partir dos quais são impressos campos de saberes outros que desvelam lugares potentes de encontros com o Outro, as suas identidades, memórias e subjetividades.
Autora de textos ficcionais (narrativos, incluindo obras infanto-juvenis, poéticos e teatrais) e organizadora de obras ensaísticas, Cidinha da Silva nos apresenta O Homem azul do deserto, que é o seu 12° trabalho ficcional, e com ele nos brinda com 52 textos, crônicas-contos, que imprimem um olhar crítico diante de fatos que nos atravessam enquanto sujeitos engajados (ou não) com o nosso tempo. Neste novo livro são apresentadas textualidades que, pela sua diversidade temática, evidenciam a maturidade da autora como cronista que se esmera na arte da escrita. Trata-se de uma escritura comprometida e que parte de uma concepção criativa que assume um olhar estético – no sentido de um trato com as palavras – alinhado com a escolha de vocábulos e expressões que passam a ser utilizados e ressignificados em suas tessituras crítico-narrativas, desvelando um acurado tratamento ideológico, subjetivo e temático, pensado e escolhido com rigor para a composição das linhas e entrelinhas semânticas criadas para integrar cada crônica impressa no livro.
Em suas crônicas-contos, Cidinha nos coloca em contato com várias perspectivas enunciativas, as quais denotam o prisma de um olhar negro educador, que traz para a discussão fatos que objetivam produzir reflexões sobre Si, sobre o Outro, sobre Nós, sobre a diáspora africana, os lugares de acesso e propagação da ritualidade, a construção da emancipação social de sujeitos negros em diferentes instâncias geográficas do território brasileiro; uma perspectiva crítica em que, por meio do conjunto de textos reunidos, desvela relatos que transitam entre o “real” e o “ficcional” implodindo as fronteiras do factual, friccionando e ressignificando fatos históricos e míticos, atribuindo aos mesmos, em vários momentos, um caráter de pulsão alegórica que lhes permitem transcender o limiar estabelecido pelas “verdades absolutas” postuladas incoerentemente por aqueles que ainda acreditam na possibilidade de colonização do conhecimento e dos corpos.
Os textos de Cidinha rompem com a dicotomia crônica x conto. Acredito que exista uma “insurgência”, não sei se consciente ou não, em seu processo criativo que dinamita a categorização de suas tessituras narrativas para simplesmente serem lidas como crônica ou conto. Aponto este traço estilístico ainda que, muitas vezes, a autora designe a sua produção textual como crônica, como o leitor poderá comprovar ao experienciar a leitura dos textos, entre outros, “O brasileiro comum e o bumbum do Hulk!” (uma crítica bem-humorada e cheia de ironia lançada ao universo masculino – e masculinista – e os seus lugares de legitimação repletos de machismo); “Ai, Maranhão!”; “Kit de sobrevivência para o ano novo”; e “Cronista analógica de um tempo digital”, no qual ela descreve”:
A crônica é um retrato do momento, do sentimento, do pensamento, da reflexão. É grito ou murmúrio, clareira ensolarada ou porão cheio de bichos rastejantes e sonolentos, escondidos pelos cantos. Corte fino de adaga, precisão de cutelo.
E se é verdade que o romance ganha o leitor por pontos e o conto por nocaute, a crônica esgrima e vence por W.O. (SILVA, 2018, p. 83-4).
Este lugar de “ganhar por nocaute” e “esgrimar e vencer por W.O” vai sendo intensificado ao longo das textualidades que nos vão sendo apresentadas. O lugar de me vencer por nocaute é evidenciado em “Iku e o menino que furtava livros”; “A merendeira e os biscoitos do recreio” (uma forma de ver o outro e um olhar pedagógico afinado com os lugares de resistência); “Na terrinha” (sou transportado por meio de imagens que me levam à casa e afloram em mim a minha mineiridade); “Um piercing” (um nocaute certeiro que passa pelos nossos corpos, um “microconto” repleto de imagens que furam e, por meio do campo do sensível, do onírico, nos fazem sangrar com – e como – a “personagem” e, com ela, atravessar as águas de Caronte); “A janela e o passarinho” (o conto que abre o livro e nos convida a vivenciar a história de um motoboy que é atravessada por um incidente que o transporta para outros espaços oníricos com a passarinha).
Para além do limiar crônica/conto, devo evidenciar alguns aspectos dentro dos quais as textualidades de Cidinha se inserem; aspectos esses que se relacionam com as questões sociais e identitárias e que transitam no universo da música e da musicalidade, do futebol, do passado corporificado no presente (“O gol de Maurício Mauro", "O conto do Messi chavista", "Niemayer e Neymar", “O homem da mudança” [um golpe cruzado bem no queixo do leitor], “Manera FruFru, manera!”, “O homem azul do deserto”); com as temáticas que amplificam e revisam os lugares de discussão sobre o gênero, a sexualidade e o olhar feminino-feminista negro, tratando as relações de afetividade, de amor e de encontro com o Outro (“Dia das namoradas”, “Descompasso”, “Um piercing”, “Karol Conká e MC Carol dão a letra”); com a politicidade (“Vozes da bibliodiversidade na Flip e em outras festividades literárias”, “Pode uma escritora negra falar sem que o mediador tente roubar a cena?”, “Somos todas Marielle Franco!”, “Lula no velório de Marisa Lula da Silva”); e também com as tradições de matrizes religiosas afrodescendentes (“Ora iê iê ginga!”, “Direito à cidade”, “Atotô”, “Vou me embora pra Wakanda. Lá sou soldada de Okoye”).
É fundamental ressaltar que os pontos aqui elencados se mesclam nas entrelinhas das crônicas-contos, amplificando os lugares de representação e a potência da escrita da autora. As “características” temáticas e estilísticas citadas apenas corroboram o argumento de que Cidinha da Silva apresenta um olhar polifônico para trabalhar as suas tessituras narrativo-poéticas/descritivas e para tratar na sua literatura temas imprescindíveis e que dialogam com as representatividades dos sujeitos negros.
Leda Martins (2002, p. 73) argumenta que “a cultura negra é o lugar das encruzilhadas”. Em diálogo e em sintonia com a discursividade de Martins, as tessituras narrativas de Cidinha da Silva transitam neste espaço mediador e intervalar das encruzilhadas. Por outro lado, a autora ressignifica o conceito/vocábulo “encruzilhada” em sua escrita, integrando-o à dimensão simbólica de “exuzilhada”, mantendo o caráter de transcendência, mas, acima de tudo, reforçando a ideia de uma cronista/contista antenada a seu tempo. Cidinha enuncia e inscreve o lugar de encontro de sua textualidade com a ritualidade. Lembremos que a escrita - assim como a arte - negra é ritualística. Por isso os seus textos conversam uns com os outros, se encontram no ofício das palavras forjadas na construção de suas crônicas e com as quais também encontramos ecos em outros trabalhos como SOBRE-VIVENTES! (2016), #Parem de nos matar! (2016) e Canções de amor e dengo (2016).
Após reler e reler O Homem azul do deserto a pulsão maior que em mim fica é o desejo de comentar cada crônica-conto que atravessou – e continua atravessando – as minhas retinas, abrindo caminhos para (re)leituras múltiplas. Não obstante, devo conter essa pulsão, pois, neste momento, em que tenho que pensar em você, caro leitor de Cidinha da Silva, tenho que ser generoso e lhe “passar a bola”, deixando espaços outros para que você realize as suas viagens e incursões onírico-reflexivas pelos encantamentos das palavras enredadas pela autora.
Belo Horizonte, 17 de maio de 2018.
Referências
MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, Graciela e ARBEX, Márcia (Org.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG, 2002, p. 69-92.
SILVA, Cidinha da. O homem azul do deserto. Rio de Janeiro: Malê, 2018.
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Marcos Antônio Alexandre é Doutor em Letras pela UFMG e professor da Faculdade de Letras desta Instituição. Pesquisador do CNPq, é autor, entre outros, de Representações performáticas brasileiras:  teorias, práticas e suas interfaces (2007);  Mayombe: arquivos da memória, pesquisas e práxis cênicas (2011); e O teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba (2017).

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