Te amo com a memória, imperecível
Por Padre Mauro Luiz da Silva
O crescente interesse pela memória nas últimas décadas tem caracterizado nossas sociedades. Iniciativas diversas, como as atividades museais e o avanço dos debates sobre patrimônio tangível e intangível marcam o “fascínio” das pessoas pelo passado, em diversas regiões do mundo. Esse interesse, contudo, muitas vezes se enuncia como um efeito de determinada concepção de “cultura” e “política cultural” em que a cultura figura como mero produto, numa sociedade de consumo. Assim assistimos, por exemplo, à proliferação de ações como “turismo” cultural em favelas e fazendas do café do século XIX, em que os “personagens” - os de ontem e os de hoje - são caricaturalmente concebidos e expostos, a serviço do lucro.
O movimento de enobrecimento de certas regiões das grandes cidades, também conhecido como gentrificação, será alvo de nossa análise em busca das razões que levam à destruição total de duas das cinco comunidades que compõem o Aglomerado Santa Lúcia (Belo Horizonte, MG-Brasil), ou seja, as vilas Esperança e São Bento, que estão com data marcada para desaparecerem do mapa. Assim, o espaço ocupado por suas ruas, becos, casas, pessoas e histórias será transformado em um parque ecológico e uma avenida. Em movimento diferente das práticas de memória-espetáculo, supramencionadas, o Muquifu propõe a salvaguarda daquilo que resistir aos tratores e à ganância da especulação imobiliária, nas comunidades afetadas. Nossa proposta é, por meio do trabalho da memória, discutir com a cidade a presença definidora das culturas africanas na formação da cultura brasileira, além da importância de se criar meios para que os favelados sejam os protagonistas das ações de tutela e preservação deste patrimônio material e imaterial.
O Muquifu - Museus dos Quilombos e Favelas Urbanos, tem como vocação garantir o reconhecimento e a salvaguarda das favelas, os verdadeiros quilombos urbanos do Brasil: lugares não apenas de sofrimento e de privações, mas, também, de memória coletiva digna de ser cuidada. A instituição reúne como acervo fotografias, objetos, imagens de festas, danças, celebrações, tradições e histórias que representam a tradição e a vida cultural dos moradores das diversas favelas e quilombos urbanos do Estado de Minas Gerais. O Muquifu nasce com a proposta de ser um museu de território e comunitário, como instrumento de resistência diante do risco iminente de expulsão dos favelados dos centros urbanos; reconhecimento e preservação do patrimônio, das histórias, das memórias e dos bens culturais dos moradores dos Quilombos Urbanos e Favelas de Belo Horizonte.
Esta nossa primeira mostra itinerante acontece no Palazzo Liviano, sede do Departamento dos Bens Culturais da Universidade de Padova, justamente por ter sido o local de “gestação” do Muquifu. Percorrendo aqueles corredores, frequentando as aulas, questionando e sendo questionado a respeito da possibilidade de haver ou não algum tipo de patrimônio cultural que merecesse minha atenção nas favelas, busquei aprofundar questões relacionadas a uma museologia mais social - parte dela forjada naAmérica Latina - que viesse a contribuir na tutela do patrimônio material e imaterial presente nas periferias, com as quais convivo quotidianamente e que é alvo de nossas ações enquanto espaço de preservação. Tentando responder à pergunta que me persegue há tantos anos, parafraseando Adélia Prado posso afirmar: “O que a memória ama, fica eterno." E, a partir de todas estas vivências, à favela digo: "Te amo com a memória, imperecível”.
Na oportunidade, além da minha presença enquanto curador do Muquifu, dois artistas do Aglomerado Santa Lúcia irão participar da vernissage no dia 15 de janeiro, em Pádua. São eles: Bianca de Sá e Fabiano Valentino.
Padre Mauro Luiz da Silva
Diretor e Curador
Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (www.muquifu.com.br)
(31) 3296 6690 / 9257 0856
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