Icu e o menino que furtava livros
Em A menina que roubava livros, a
mãe de Liesel Meninger, personagem principal, era comunista e sofria
perseguição nazista. Seus filhos, como ela, várias vezes escaparam da morte no
período de 1939 a 1943. A violência se alastrava como erva daninha por todos os
cantos da Alemanha e a morte, perplexa diante da degradação humana, resolveu
narrar a história de Liesel que driblava seu cheiro (da morte) exalado das
valas comuns, dos corpos de homossexuais, descapacitados, comunistas, judeus e
todos os adversários do nazismo, incinerados nas câmaras de gás.
A morte, então, acompanha a
trajetória dos livros que escapam das grandes fogueiras públicas promovidas
pelo Estado e como Liesel os resgata, assim como rouba outros de bibliotecas e
passa a alimentar-se do perfume de vida difundido pelas mentiras deliciosas e
encantadoras contadas nas obras literárias.
No Brasil, 71 anos depois da 2ª Guerra,
Alex Santana não tem a mesma sorte de Liesel e é preso ao furtar três livros em
uma livraria de shopping soteropolitano. Segundo declarações prestadas na
delegacia, foram três livros naquele momento, mas o menino já havia furtado
outros sete. Todos para estudos.
O texto da notícia enfatiza o
gênero dos três livros furtados, ficção. Fica no ar o sub-texto, não eram livros
para estudos? Icu, pesarosa, testemunha do desfalecimento do desejo de voar do
menino, pergunta: quem decretou que só se estuda em manual ou livro
didático? Se alguém rouba um pão francês
é porque tem fome, mas se rouba um chocolate ou sorvete é porque tem febre de
riqueza e luxo? E Icu mesma responde: é que no furto praticado pelos pequenos,
o sonho e a delícia não são permitidos.
Icu, testemunha da luta de
Alex pela sobrevivência, resolve defendê-lo na justiça, pois que, sem recursos
para pagar fiança, mandaram o menino para o presídio da Mata Escura, onde os
dias não amanhecem e as noites de lua desconhecem a ternura.
Diz Icu na peça de defesa: todos
os viventes um dia serão meus, é a certeza mais perene da vida. Mas de alguns,
como Alex, a vida, minha opositora, me aproxima pelas iniquidades impostas ao
caminho. Essa gente integra coletivos de pessoas expostas à precariedade, ao
racismo, aos abusos, à violência. Gente que sobrevive por teimosia. Deles
costumo gostar e quero que vivam, mas a vida insiste em que eu os leve.
A vida tentou me convencer a
levar Alex e tantos meninos iguais a ele, quando as mães não conseguiram fazer
pré-natal, quando nasceram e não foram pesados e cuidados nos postos de saúde
como todas as crianças deveriam ser, quando a família não pôde alimentá-los
como mereciam, quando as doenças típicas da miséria os acometeram, quando escaparam
das chacinas, porque minha irmã, a sorte, fez com que o morticínio ocorresse
minutos antes da passagem deles pelo local. A vida quer entregá-los a mim, na
bandeja, como prato frio e amargo. Eu me recuso a comer. Eles driblam a vida como
grandes jogadores que aprendem a ser e conseguem me evitar.
Meu cliente, senhoras e senhores
jurados, ao furtar três livros de ficção, em ato extremo de resistência ao nada
que lhe é destinado pela vida, afirma que, de todas as mentiras empurradas pela
garganta (da inexistência do racismo, da existência da igualdade, da justiça,
do equilíbrio no julgamento do delito, do tratamento humano para seres
humanos), a literatura é a mentira menos danosa. Por isso, peço sua absolvição.
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