Literatura como tabelinha


Marcos Fabrício Lopes da Silva*
A literatura já foi vista como sinônimo de erudição ou saber enciclopédico. Em fins do século XVIII, a literatura passa a ser entendida como produção artística, o que lhe conferirá um caráter distinto das outras manifestações humanas. No século XIX, atribui-se à literatura um caráter mais cientificista e documental, visando expressar minuciosamente o contexto histórico-social do momento. Fazendo frente ao critério realista, propostas mais metafóricas foram incentivadas, conforme o ideário do labor criativo voltado para o trabalho formal com a linguagem. Diversificados propósitos autorais, ora mais conotativos, ora mais denotativos, se estenderam também pelos séculos XX e XXI, ajudando a promover uma fortuna literária capaz de ressaltar a excelência e a decadência humana, com profunda inteligência e sensibilidade.
Na obra História da literatura brasileira (1916), José Veríssimo enfatiza: “somente o escrito com o propósito ou a intuição dessa arte, isto é, com os artifícios de invenção e de composição que a constituem, é, a meu ver, a literatura”. O professor Raúl H. Castagnimo, em Que é literatura (1969), propôs condensar a literatura em cinco definições: “1) literatura é sinfronismo [eloquência]; 2) literatura: função lúdica do espírito; 3) literatura é evasão; 4) literatura é compromisso; 5) literatura, ânsia de imortalidade”. Inteligentemente, na canção Nosso pequeno castelo (2011), expressa o dilema existencial da literatura o grupo paulista Teatro Mágico, criado pelo poeta Fernando Anitelli: “no nosso livro, a nossa história é faz de conta ou é faz acontecer?”.
Para entender as definições de literatura, convém tomar conhecimento da crítica literária e de suas múltiplas abordagens. Podemos destacar a Crítica Histórica, que relacionava a obra com os fatos históricos, fundada na análise dos documentos; a Crítica Impressionista, que analisava as impressões do leitor; a Crítica Humanística, na qual deveria se observar na obra a capacidade de análise e erudição; a Crítica Biográfica que se preocupava com o perfil do autor e sua impressão de mundo retratada na obra; o Formalismo Russo, o New Criticism, o Estruturalismo e o Pós- Estruturalismo, que rejeitavam os fatores extrínsecos ou extraliterários da obra, procurando estudá-la por sua forma e matéria própria; a Crítica Sociológica, através da qual se buscava na literatura uma arte que criticasse a realidade em seu arranjo ideológico hegemônico; a Estética da Recepção; a Crítica Psicanalítica, que procurava na obra a representação do inconsciente do sujeito; a Crítica Gramatical, que se reduzia ao estudo da gramática da obra; a Crítica Feminista, que destaca as relações de gênero espelhadas no texto literário; a Crítica dos Estudos Culturais, que identifica os diversos graus de expressão da alteridade na literatura; e a Crítica Genética, que se preocupava com os momentos de criação da obra, o seu “nascimento”.
Afrânio Coutinho, em A Literatura no Brasil (1959), recomenda que: “a crítica não deve partir da alma do crítico, resumindo-se nas suas impressões. A sua origem não é o sujeito, mas o objeto, isto é, a obra. Nesta é que se deve situar para, analisando-lhe os padrões arquiteturais e estilísticos, fazer um pronunciamento acerca de seu mérito. O mais é achismo irresponsável, impressionista, leviano, ocasional. Pode-se chamar de tudo, menos crítica. E quem o fizer é tudo, menos crítico”. Coutinho considerava ainda o fato literário como “um ‘monumento’ estético com qualidades e finalidades próprias, retiradas de sua própria constituição íntima, e analisáveis por uma crítica propriamente literária, específica nos seus atributos e métodos”.
Antonio Candido, em Formação da literatura brasileira (1956), defende que o crítico deveria se atentar para a definição de literatura como sistema, considerando a tríade autor-obra-público, o que significa a necessidade de observar também a influência dos fatores extraliterários. Tais considerações o levaram a dizer que a origem da literatura brasileira não se encontraria no Barroco, como afirma Coutinho, e sim no Romantismo. A literatura produzida pelo Barroco, segundo Candido, era um prolongamento da literatura da metrópole. Dessa forma, considerar o Romantismo como sendo a própria manifestação literária brasileira, colaboraria com a formação da consciência nacional que estava se solidificando.
Por outras veredas interpretativas, Haroldo de Campos, em O sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira (1989), destaca o entendimento da história literária a partir de sua constante atualização feita na recepção. A partir dela, nota-se o continuado e múltiplo destaque dado, ao longo dos tempos, à linguagem criativa lapidada pelo poeta barroco Gregório de Matos. Desse modo, Campos destaca como critério crítico maior as várias leituras a que um determinado autor pode ser submetido, bem como sua influência inventiva na literatura nacional. Tal projeção muito se aproxima da concepção contemporânea de literatura, tomando como exemplo o livro de crônicas de Cidinha da Silva, intitulado Baú de miudezas, sol e chuva (2014). No texto “Era do rádio particular”, a escritora mineira aproxima seu projeto literário do recurso futebolístico da tabelinha como metáfora do empenho criativo compartilhado entre autor e leitor. Estética da Recepção com Poética da Repercussão:
“Na literatura, em que posição jogo? No ataque ou na defesa? Em nenhuma das duas, respondi. Eu gosto do meio, gosto de armar o jogo. Não adianta ser Romário ou Reinaldo, se não houver Sócrates, Cerezo, Falcão, Zidane, Didi, Júnior – que era lateral, mas dava tratos à bola como meio-campista genuíno e passava-a redonda aos atacantes. E como literatura é um jogo jogado junto, meu barato é armar, pôr a bola para rolar e deixar meus leitores na cara do gol”.
* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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