Mariana de Assis, de nós para nós!


Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDFCampinas, 08 de setembro de 2014 a 12 de setembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 605

Cânones da periferia


Entre caixas de cerveja, algumas mesinhas, cadeiras de plástico e estantes de livros, a placa chama a atenção do cliente desavisado: “Silêncio! Respeite o nosso poeta do sarau!” E o bate-papo de fato termina, quando o espaço é tomado por uma atmosfera diferente, espécie de transe poético. Começa então o sarau literário Elo da Corrente, no bar do Santista, Rua Jurubim 788-A, bairro de Pirituba, periferia da capital paulista. É assim há sete anos. O poeta se inscreve e se apresenta. Às vezes um poema mesmo, outras uma música, às vezes nem uma coisa nem outra e, ainda assim, poesia.
O Elo da Corrente não é único. Ao contrário, integra um movimento popular já bastante consolidado nas periferias do Brasil, especialmente em São Paulo. Os saraus literários ganharam mais popularidade a partir do reconhecimento da Cooperifa – Cooperativa Cultural da Periferia, um dos pioneiros. Na mesma época, início dos anos 2000, a revista Caros Amigos publicou três edições temáticas: a Caros Amigos Literatura Marginal, com uma coletânea de poemas e contos de escritores da periferia que também apresentavam o que seria literatura marginal, um termo que ainda hoje não é consenso, mas que se tornou popular, também entre os pesquisadores da área.
O organizador do conteúdo das edições foi Ferréz, autor do livro Capão Pecado, um dos sucessos de crítica e venda da literatura marginal/periférica. Ferréz teria pensado no termo por inspiração dos poetas dos anos 1970, embora também faça citações à escritora Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de despejo, um clássico da literatura negra que foi traduzido para treze idiomas.
Para Mariana Santos de Assis, autora da dissertação “A poesia das ruas, nas ruas e estantes: eventos de letramentos e multiletramentos nos saraus literários da periferia de São Paulo”, uma das várias diferenças entre uma geração e outra é que a primeira não tinha a intenção de participar do mercado editorial como a segunda. Eram marginais, não apenas em relação ao mercado, mas à ditadura militar. Hoje são periféricos os poetas dos saraus e, na proporção com os poetas dos anos 1970, não se identificam com o sistema da mesma maneira que os primeiros contestavam o regime autoritário.
“Hoje também falaremos de literatura, porém abordaremos outro tipo de marginalidade, a literatura produzida e amplamente difundida nas periferias de São Paulo, a despeito do descaso das grandes mídias, do pouco ou nenhum reconhecimento das instituições escolares e acadêmicas e da indiferença da crítica, a periferia segue fazendo arte e agora brinca com a sagrada arte da palavra, as belas letras. A literatura tem sido mais um combustível para as lutas da periferia por seu espaço no centro”, escreve a autora da dissertação na introdução do trabalho.
Mariana prefere tratar a literatura do movimento como marginal/periférica, termo emprestado da tese de doutorado do docente Mário Augusto Medeiros da Silva, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). Ela salienta que hoje não é possível precisar o número de saraus espalhados pela cidade de São Paulo. “Alguns dos que tive mais contato ao longo da pesquisa, também porque existem há mais tempo, o que lhes confere maior representatividade, são: Cooperifa, Sarau do Binho,  Sarau da Brasa, Elo da Corrente, Suburbano Convicto e Perifatividade. E fora do Estado, o Sarau Bem Black em Salvador (BA) e o Griotagem (RJ)”.
Da mesma forma, mensurar a produção cultural desses coletivos não é tarefa fácil. “Ao longo do meu trabalho de campo, em 2013, notei que, na maioria dos encontros, havia lançamentos de livros inéditos. Um ano antes, Michel Yakini, do Elo da Corrente, falava em cerca de 200 títulos lançados por autores da periferia, de forma independente”. Somente o selo editorial do Elo já publicou oito títulos de autores de Pirituba. Há inclusive uma livraria especializada em literatura marginal/periférica, a Suburbano Convicto, também em São Paulo.
A popularidade da poesia e da literatura nas periferias se deve muito ao hip hop e ao rap, mas também tem relação com a literatura negra, negra/marginal e, no caso do sarau pesquisado por Mariana, a cultura nordestina. É comum que alguém tome o microfone para declamar escritores negros como Carlos de Assumpção, nome bastante presente nos encontros observados pela autora.

Letramento e multiletramento
Mariana escolheu apresentações de poetas no sarau literário Elo da Corrente para analisar as experiências de letramento e multiletramento, com base nos Novos Estudos do Letramento, letramentos digitais e, sobretudo, a proposta do chamado Grupo de Nova Londres para uma Pedagogia dos Multiletramentos. “O letramento é a ideia da língua escrita como uma prática social de linguagem. Para além da alfabetização, existem outras formas de lidar com a língua escrita, outras formas de leitura, por exemplo, e de interpretação de outros textos. Às vezes, até sem precisar necessariamente de alfabetização, as pessoas lidam com a língua escrita, porque é inevitável. É uma prática social”.
Sobre multiletramentos, Mariana explica que “consideram além da língua escrita, outras semioses, outras linguagens como a música, a corporalidade, a performance e também a diversidade cultural, que, em determinados contextos, vai influenciar na construção de sentidos nas leituras que são feitas”. O objetivo da pesquisadora foi, a partir dessas perspectivas, entender como as apresentações constroem sentidos e também de que forma a poesia marginal/periférica pode contribuir para possíveis questionamentos sobre a teoria literária, a ideia de cânone, de qualidade literária e estética.
E muito embora a pesquisadora considere a contribuição da escola formal na expansão da alfabetização e seu reflexo nas culturas da periferia, ela ressalta que não há justificativa que não seja sociológica para a ausência de determinados autores nos currículos escolares e espaços acadêmicos. “Um dos fatores determinantes para a expansão da literatura na periferia é a expansão do ensino público. Por mais que haja críticas à estrutura da escola, não dá pra negar que a poesia é um gênero canônico, do espaço escolar. Essa poesia chegou na periferia de alguma forma. Também por meio do rap e por meio do samba, mas a vontade de ter livros impressos como os poetas periféricos têm, vem também dos processos de alfabetização”. 
Não quer dizer que a oralidade foi abandonada, mas, cada vez mais, os artistas se aproximam do escrito, de uma poesia que tem métrica, estruturada e mais próxima do cânone, salienta Mariana. “Sem a expansão da alfabetização do ensino fundamental e médio talvez esse processo não tivesse chegado aonde chegou, ao ponto de ter livros impressos. Talvez eles continuassem fazendo poesia como as letras de samba lindíssimas e letras de rap altamente líricas, mas todo esse conjunto, a escola, os processos de alfabetização, a literatura negra, o movimento hip hop, a cultura do nordeste, as culturas orais compõem um caldo que vem sendo construído historicamente”. 

Apresentações
De quatro encontros poéticos, Mariana destacou a apresentação de Osmar, um capoeirista que explicou, com o instrumento, a história de um toque de berimbau que é o de cavalaria. Quando a capoeira era proibida e a polícia se aproximava, o toque avisava para que as negras entrassem na roda e se iniciasse o samba de roda. Em seguida quem usou o microfone fez a relação do passado com a repressão da polícia ao baile funk e o próximo lembrou episódios relacionados ao rap. “Juntando com a música, foi uma aula de história, de sociologia. As coisas são muito de improviso e nesta sequência as pessoas puderam entender a repressão da cultura negra no Brasil”, diz Mariana.
Em outra apresentação analisada, uma participante declamou um poema que falava do tambor e pediu um acompanhamento de instrumentos de percussão. “É esse processo de oralizar a escrita e incluir a música, por exemplo, que é um processo de multiletramento”.
Uma terceira experiência que Mariana traz para a dissertação foram duas apresentações feitas pelo mesmo artista. “Primeiro ele apresentou um rap e depois uma poesia. Observei as posturas diferentes, atitudes totalmente diferentes. No poema, uma maneira de declamar que é mais delicada. Ele falava de moradores de rua. No rap fazia uma homenagem aos saraus, mas ainda assim, com a postura mais incisiva, mais forte. Porque são gêneros diferentes”.
Em outro episódio um rapaz recitou um poema de Carlos Assumpção completamente modificado. “Quando ele muda o poema, constrói outro texto. Foi uma apresentação de 20 segundos, ele praticamente adaptou o poema para aquele espaço, fazendo algo como intervenção política ou espetáculo que são do processo de oralização.” A autora complementa que o texto oralizado traz algo de particular de quem o diz. “As novas tecnologias estão criando o Lautor – leitor autor que surge da nossa facilidade de intervir no texto do outro”, como sugere a docente Roxane Rojo, orientadora da pesquisa.

Publicação
Dissertação: “A poesia das ruas, nas ruas e estantes: eventos de letramentos e multiletramentos nos saraus literários da periferia de São Paulo”
Autora: Mariana Santos de AssisOrientadora: Roxane RojoUnidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)

Comentários

Postagens mais visitadas