A agulha do tempo novo: Um Exu em Nova York
Há alguns anos escrevi um comentário sobre o novo CD de uma cantora que gosto muito e, em resposta, ela mandou uma mensagem agradecida dizendo que eu havia "pescado perolinhas do disco". Fiquei muito feliz, como fico agora, com esta resenha de Milena Britto. É uma alegria que o livro da gente vá crescendo, ganhando e criando mundos pelo olhar de quem nos lê. Leiam também. Muito obrigada, Milena.
A agulha do tempo novo: Um Exu em
Nova York
Milena Britto –
Professora do Instituto de Letras da UFBA
“Um Exu em Nova York” é um pequeno
tesouro na literatura brasileira. O livro traz 19 pequenos contos que ativam um
peculiar panorama do racismo e seus efeitos enquanto revelam os sonhos, a
tristeza, a dor, a falta, a alegria, a alma de personagens que se aproximam da
gente.
Cidinha da Silva tem um olhar
profundo e uma mão precisa: os contos não desperdiçam matéria nem tempo; não
enrolam, não distraem o leitor. Há um rio correndo e costurando as memórias que
nos saltam, às vezes como o respingo d’água que cai gelado e afiado como agulha
a nos picar, como é o caso do conto “O velho e a moça”.
Li esse conto tocada pelo emaranhado poético
de vida e mistério que é a própria escrita. Se já significa tanto a palavra para
a mulher, que recupera a sua voz usurpada pelos homens, muito mais profundo é o
sentido da escrita para a mulher negra, que enfrenta não apenas a
invisibilidade, mas o racismo, o aniquilamento pela palavra eurocêntrica. A
autora, nesse conto, aciona a beleza da oralidade junto à política da palavra
na diáspora africana:
“Não tema, foi virada a página.
Tens agora um livro a escrever. Mas, por onde devo começar, velho Ayrá? Indaga
a moça, no momento em que afina o corte do facão na pedra. Do copo vazio,
menina! Esvaziar o copo é uma arte. Demoraste um tempo longo no serviço, agora
tens a agulha do tempo novo.
A maré dos olhos do velho espoca
devagar e umedece os vincos do rosto de bronze. Seu olhar perdido desfalece no
facão reluzente. Estás chorando, velho Agodô? Não, menina. É a memória das corredeiras que escapa.
Sempre à noite, velho Ayrá? Sim. É o orvalho que brota desse coração cansado.
(...) Devo contar o vivido, velho Agodô? Conte o que fizeste dele, minha
filha”.
Só esse diálogo nos deixaria um
longo tempo considerando o passado e o futuro da nossa história de violência
colonial, mas ficam as palavras das personagens a nos contar, de maneira muito
bela, o que significa “escrever”, essa ação que é também metáfora de vida, de
resistência, de identidade, de imaginação e reinvenção.
Na obra, narradores e personagens
alternam-se em idades, gêneros, paisagens, contextos, para nos emprestar suas
emoções e suas vidas, sempre desde esse lugar profundo que é a cultura
africana, nosso legado usurpado.
Contos como “I have shoes for You”,
“Maria Isabel”, “Válvulas”, “Kotinha”, “Marina”, “No balanço do teu mar”, e
outros, ainda erguem mulheres que evocam encontros e desencontros cotidianos
que podem ser vistos como uma representação da multiplicidade que cada mulher
negra carrega em suas vivências. As personagens femininas de Cidinha da Silva
nos carregam com elas, nos arrastam por corredeiras, ora belas ora tristes.
O que faz o livro especial é que a
autora consegue não ceder aos discursos que explicam, que refundam, que propõem
de forma imediata e direta. Suas denúncias são a partir da arte, do encontro
com a palavra, com as histórias, com as personagens. Seus textos são uma
declaração de amor à escrita, às mulheres, à cultura africana.
A obra é toda servida com linguagem
cuidadosa, ritmo equilibrado com o que é contado, imagens que trazem memória,
geografias diversas e a presença magnífica da cultura africana em suas mais
variadas expressões, tanto ancestrais quanto contemporâneas. Aliás, cada conto
no livro é uma peça literária única, não há repetição.
As personagens estão em ruas de
Nova York, em terreiros, em comunidades, em casas, em si mesmas. Não faltam
mulheres no livro a nos trazerem temas caros, como a solidão, os desejos e as
experiências de mulheres lésbicas; também há homens e velhos, há mães e
meninas. A autora foge de clichês e enfrenta com delicadeza as histórias cruas
que se oferecem ali, às vezes explorando corajosamente os lados ocultos e,
geralmente, desprezados na literatura mainstream,
como o desejo proibido. O conto “Mameto”,
outro conto que me seguiu feroz e certeiro com uma linguagem poderosa, viva, é
um exemplo disso:
“Diziam que ali as paredes gemiam.
Maldade da língua do povo, modo de falar mal do terreiro que tinha muita
roçona. A começar pela Mameto, que roçava à vera e não escondia de ninguém, mas
não colocava letreiro na testa. (...)
Há alguns anos Mameto estava
sozinha e naquela solidão de autoridade que ela cultivava ninguém se metia. No
entanto, se alguém conseguisse chegar à outra margem daquele rio silencioso que
era seu interior, atravessaria um caminho de pedras lisas e conchas pontudas
difícil de firmar o pé. (...)
Até que uma filha da casa
apresentou-lhe a nova namorada. (...)”
Não conto mais, mas já se pode
prever os caminhos que se seguem. Essa história toda está em camadas e camadas
de sutilezas e simbologia. A vida dessa mulher revela um novo desejo, uma
paixão avassaladora e a abordagem não maniqueísta, com a presença metafórica e
simbólica dos orixás, é um belo chamado ao direito de mulheres mais velhas se
apaixonarem novamente e se entregarem ao chamado do desejo, algo que para a
mulher negra lésbica é caro, afinal, o que mais se fez na literatura foi se
roubar e estereotipar o corpo dessas mulheres. O conto de Cidinha é um canto
livre dessas mulheres invisibilizadas e castradas em seus desejos.
O livro traz um conjunto
inesquecível de histórias e personagens. Fiquei muito tempo com essas histórias
e com elas sigo. A escrita de mulheres negras é terreno fértil, aponta para um
lugar de reelaboração de mundo, traz possibilidades novas de linguagem e
caminhos para pensarmos essas escritas e seus efeitos. Fui feliz nos encontros
e caminhos desse livro. Cidinha da Silva não faz pouco com esse Exu que cada
página de “Um Exu em Nova York” guarda.
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