Sobre a Nota Pública da Professora Vanicleia Silva Santos
A nota pública da Professora do Departamento de História da UFMG, Vanicléia Silva Santos, sobre os ataques a organização de evnto sobre História da África Pré-colonial é pedra singular e generosa na reconstrução das coisas, necessária em tempos tão nebulosos, nos quais se confunde o protagonismo de uma questão e de sujeitos que a defendem com o linchamento e eliminação de outros sujeitos que não seguem a cartilha dos donos da noção de protagonismo. Uma moçada que joga a criança fora junto com a água do banho.
Para quem quise aprender (e crescer, sair da adolecência que se manifesta tardiamente porque o racismo nos impede de viver as fases da vida no tempo certo), estão aqui concatenadas ideias, contexto, historicidade, criticidade, generosidade, amor por uma causa e por um ofício, que podem, se nos permitirmos fazer autocrítica, reposicionar o pensamento que nos torna críticos estéreis. E a esterilidade, se vocês não sabem, não é própria das culturas negras, nós somos férteis, nosso Odu é de transformação, de reinvenção do mundo. Por isso conseguimos sobreviver à escravidão e continuamos sobrevivendo ao racismo, à medida em que reinventamos lugares de dignidade e plenitude humana para existirmos.
Obrigada, Professora Vanicléia Silva Santos. Sua nota pública é uma peça de sabedoria, generosidade e compromisso com a transformação, que nos convida a reconhecer que erramos, e nos insta a ir além da crítica estéril e a fazer alguma coisa na dura seara da realização, da transformação dos modos de viver e de fazer que nos incomodam.
Uma espada nas mãos de alguém louco para beber sangue, certamente será desastrosa, mas uma espada nas mãos de alguém perdido na mata, pode ser a ferramenta que afastará o mato e os arbustos e abrirá a trilha para os caminhos que precisem ser feitos; a ferramenta para cortar os galhos que acenderão a fogueira que espantará os animais à noite; a ferramenta que alcançará frutos silvestres, que cortará aqueles de casca mais dura e oferecerá alimento ao guerreiro.
Ogum não guerreia pelo prazer de destruir e se vangloriar da destruição, do aniquilamento. Ogum guerreia orientado por objetivos e estratégia. Sua nota pública nos ensina como Ogum guerreia, é preciso ter fundamento.
NOTA PÚBLICA
Em razão da forma desmedida e agressiva das “críticas” dirigidas à organização e a organizadora do Simpósio Internacional “Novas epistemes para o estudo da África pré-colonial: agência africana e conexões”, em um momento tão delicado da história do Brasil, com o arrefecimento das pesquisas no campo dos estudos africanos e também no campo das relações Brasil-África, decidimos cancelar o evento que aconteceria entre os dias 7 e 9 de agosto de 2019.
Vale lembrar que as “críticas” tratavam especialmente da composição racial de uma das mesas – das 28 pessoas inscritas, 10 eram pretas e pardas, 12 brancas e as outras não sabemos porque não as conhecemos. Todas as propostas foram aceitas, sem escrutínio racial dos proponentes, porque atendiam aos critérios estabelecidos na chamada pública para comunicações que se enquadrassem no tema do evento.
Os trabalhos deveriam propor o rompimento com visões estáticas e conceitos colonialistas na escrita da história da África pré-colonial (daí a expressão “novas epistemes”). As abordagens deveriam privilegiar também as dinâmicas dos contatos externos, como as relações do continente africano com as redes comerciais estabelecidas com o Mediterrâneo, e com os oceanos Índico e Atlântico.
A ideia de organizar o simpósio partiu da constatação de que as pesquisas sobre o referido recorte temporal são poucas no Brasil, em detrimento de outras temporalidades. O Simpósio Internacional pretendia abordar temas da história da África pré-colonial compreendidos entre os séculos XIV e XIX. O objetivo era conhecer novas pesquisas desenvolvidas sobre dinâmicas históricas mais antigas das sociedades africanas, discutindo suas estruturas políticas, sociais, culturais e econômicas, bem como as relações com outros universos e sociedades.
O objetivo dessa nota pública é argumentar não apenas sobre o número de pessoas negras e brancas inscritas no evento, mas também refletir sobre o racismo estrutural que ainda – e infelizmente – permeia a produção de conhecimento nas universidades brasileiras. Problematizar esse momento crítico é essencial para pensarmos sobre questões estruturais e sua relação com o campo de estudos africanos com vistas a avançarmos nessa agenda.
Poderia ter simplesmente cancelado o Simpósio Internacional, mas não é possível simplesmente cancelar este evento, nem passar para o próximo evento, ou apenas adicionar mais uma informação no meu currículo. Espero que o cancelamento deste evento abra espaço para a realização de congressos em todo o Brasil sobre a África, e especificamente sobre a África pré-colonial. Em solidariedade com aqueles que, como eu, reconhecem o significado dos movimentos negros no Brasil, nas Américas, na África, na Europa e em todos os outros cantos do mundo, convido-os a realizarem o Congresso em seus espaços institucionais.
Em Os Condenados da Terra, Frantz Fanon nos lembra que é o miserável da terra sozinho que pode acabar com a tirania dos legados da escravidão e do colonialismo. Em solidariedade aos nossos críticos, podemos construir e fortalecer nossas colaborações para tornar o Brasil uma sociedade melhor e mais justa, promovendo a verdade. Um aspecto dessa luta é descolonizar a história da África. O meu exaustivo trabalho com os três novos volumes da História da Geral da África e das diáspora africanas da UNESCO faz parte dessa luta.
Nós, que dedicamos nossas vidas ao trabalho de descolonização da profissão de história no Brasil, acolhemos esta luta para impulsionar a história da redenção africana da humanidade e o renascimento do mundo negro na África e na diáspora africana. É importante que estejamos prontos para identificar e criticar os esforços que buscam manter as antigas narrativas coloniais da África e do povo africano.
Espero que o nosso desejo de organizar um congresso que tentasse fazer este trabalho seja retomado por aqueles que pediram o fim do congresso. Como Fanon nos lembra, não basta ser crítico, a questão difícil, a tarefa mais dura, é construir algo.
Sobretudo por vivermos no Brasil de hoje, ressalto que a liberdade intelectual é fundamental. Devemos lutar para que cada pessoa tenha liberdade para pensar e ter ideias. A liberdade intelectual não é apenas a autonomia de pensamento, pois mais importante é a possibilidade de expressar o pensamento. Este é um direito humano, e pode ser encontrado no Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Negros e negras de todo o mundo continuam sendo os defensores da liberdade social e intelectual, e eu tenho orgulho de fazer parte dessa tradição.
No passado, e alguns podem dizer que até hoje, impediram a nós, pessoas negras, de irmos à escola e até de escrever. É lógico que nos destacamos na luta pela liberdade intelectual! É lógico que devemos exigir liberdade intelectual para todos! Pretos e pretas sofreram censuras de todo tipo, e agora a nossa diferença é mostrar ao mundo como expressar uma crença verdadeira na liberdade intelectual.
Considerando meu papel de intelectual educadora negra, explico aos amigos que a disciplina História da África foi criada, institucionalmente, em 1946, por um pesquisador europeu, Roland Oliver, da School of Oriental and African Studies-SOAS, da Universidade de Londres. O desenvolvimento posterior da disciplina em outros países foi complexo, como no caso dos Estados Unidos, no início dos anos 1950, momento de plena segregação racial. Digo isso para ressaltar que o campo de estudos africanos e da diáspora africana é internacional e tem pesquisadores em todo o mundo, do Egito à África do Sul, da Índia à Austrália, da Arábia Saudita à Rússia, de Portugal ao Reino Unido, do Brasil ao Canadá. Portanto, não é restrito ao Brasil. Aqui, fora o pioneirismo da UFBA desde a década de 1970, somente a partir de 2003 a disciplina foi institucionalizada na maior parte das instituições de ensino superior. Até hoje algumas universidades não a possuem na grade curricular dos cursos de História.
Embora tardia, a institucionalização da disciplina no Brasil é resultado dos esforços dos movimentos negros que se mobilizaram fortemente para a criação da Lei 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade da inclusão do “estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”. Assim como a ascensão dos estudos sobre escravidão no Brasil, a partir da década de 1980, foi grandemente influenciada pela militância negra.
Reconhecemos o protagonismo da população negra na conquista de uma agenda para a abertura dos estudos africanos no Brasil, cuja finalidade era garantir um ensino que eduque todos os brasileiros para o respeito às diferenças e tenha a promoção da igualdade racial como uma de suas principais metas. Portanto, não tem lógica críticas radicais e opressoras contra qualquer pessoa que abraçou profissionalmente esse desafio.
Por fim, mas não menos importante, é preciso quebrar com o machismo, a misoginia e o racismo pessoal e estrutural que afeta a todos e todas. Estou certa que esse infeliz episódio não teria ocorrido se eu fosse homem, pois dezenas de eventos sobre História da África já foram realizados no Brasil por homens com ampla maioria de convidados brancos mas nunca houve qualquer crítica contra estes.
Apesar das críticas, continuarei formando pesquisadoras e pesquisadores de alta qualidade, fazendo investigações, lutando pela descolonização da história da África e das diásporas africanas e educando para a inclusão, porque a educação é a única escolha para tornar este mundo um lugar melhor.
Agradeço o apoio e a solidariedade que recebi pessoalmente de colegas, amigos e militantes brasileiros e estrangeiros, agradeço as moções públicas de apoio do GT Nacional de História da África da ANPUH, do Centro de História da Universidade de Lisboa, ao Departamento de História da UFMG (meu lugar de luta e de construção) e de numerosos pesquisadoras e pesquisadores negros e negras vinculados à Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as - ABPN, da qual fui vice-presidente.
Agradeço também aos participantes do evento pela compreensão e à comissão organizadora pelo suporte e força.
Vanicléia Silva Santos.
Coordenadora do GEAP - Grupo de Estudos de História da África Pré-Colonial/Grupo de Pesquisa Áfricas.
Professora de História da África (UFMG).
Coordenadora do GEAP - Grupo de Estudos de História da África Pré-Colonial/Grupo de Pesquisa Áfricas.
Professora de História da África (UFMG).
Belo Horizonte, 5 de agosto de 2019.
Comentários