De mulheres seduzidas (e aturdidas) por um toque de tambor
(Por Maria Nazareth Soares Fonseca*)
"Mulheres solitárias, malcasadas, mal-amadas, carentes e homens – alguns prepotentes, outros nem tanto – desfilam pelo novo livro de Cidinha da Silva, Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor!, junto a lésbicas e gays. Todos jogam cartas em lances quase sempre não muito felizes para fugir à solidão. A metáfora do “chinelo velho” que aceita “o pé doente”, explorada com ironia no conto Isabel e Rocco, é bastante feliz para descrever as figuras que transitam por espaços configurados pela solidão, pelo medo do abandono, pelas relações sustentadas por dependências emocionais e outras. Num certo sentido, o leitor é levado a circular mais freqüentemente pelos espaços do “patinho feio engrunhido pela chuva fria”, que pelos do “cisne dourado”. Embora esses dois espaços estejam concretamente nomeados no conto O pato e o cisne, eles se espraiam por outros, quase sempre invertendo a magia da metamorfose que, no conto O Patinho Feio, de Hans Christian Andersen, faz o cisne negro emergir das penas rotas de um patinho desengonçado. O diálogo explícito com outros textos – um poema de Drummond, letra de canção de Clara Nunes e Paulinho da Viola, artistas e personagens da TV e outros – trança os caminhos pelos quais transitam relações infelizes, fantasias de encontros, alguma perversão e muita desilusão. Não há cisne negro soberbo que consiga nadar solenemente pelas águas revoltas da sexualidade mal resolvida e por voluptuosidades de encontros alicerçados em técnicas e artes de fazer amor. Isto dizem os contos.
São vários os rostos que se mostram nas histórias criadas por Cidinha da Silva, que já nos presenteara com o livro Cada Tridente em seu lugar e outras crônicas (2006), já em segunda edição. Um painel de pessoas e vidinhas comuns, ritmado pela busca de afeto, de companhia, de casual sex, de sexo, sexo, sexo, ou mesmo de soluções incomuns expõe o corpo atormentado pelo desejo, em busca de soluções que possam aliviá-lo. São histórias de humores e impulsos em corrida louca para desbancar a solidão ou o vazio de uma convivência que sabe a cebola e cerveja mas que se incomoda como o contato de sola de pés tipo lixa. Como no conto Isabel e Rocco.
O horror de ficar só é, pois, o mote presente na maioria das histórias. Algumas são pequenos flashes, cenas rápidas tiradas da vida de gente comum, expostas, por vezes, no limiar entre a comiseração e o distanciamento que regula o envolvimento da autora com as figuras que cria. Em outras, a intromissão da voz da autora fica escancarada, dirigindo o leitor à defesa do amor explícito entre homens, como em O outro amor, ou refletindo sobre os significados ocultos e transparentes de humores alterados pela TPM na mulher, no conto de mesmo nome. Aliás, em várias histórias, essa intromissão se mostra sem preconceito e o controle da significação interpõe-se à delícia de se deixar passear por cenas bem costuradas, arrematadas por finais muito bem construídos.
Quando a invenção corre solta, a mirada irônica sobre os casos triviais é uma estratégia feliz na composição de histórias de mulheres e homens em busca de alívio para a solidão e de apaziguamento da força implacável do desejo. A ironia mostra-se por isso como uma competente estratégia de construção narrativa e, em algumas histórias, é o grande impulso da narração. Ainda quando é posta para fora do palco textual para dar lugar a uma voz que se levanta em defesa de causas concretas, como a da homossexualidade por exemplo, ela, a ironia, mostra-se coerente com a proposta da maioria das histórias pois ratifica a motivação dada pelo título do livro: Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor!.
Bater tambor, neste livro, tem múltiplos significados, sempre ligados à vivência da sexualidade pilhada em desassossego que é, aliás, o mote reiterado no livro. A busca constante de afeto, amor, sexo faz-se sintoma de um corpo atormentado, em desassossego, mas é também expressão de vitalidade. E algumas das ilustrações de Lia Maria, ao serem postas em diálogo com os textos, reforçam essa tendência dos contos, embora alcance outras manifestações de corpos femininos expostos nos traços fortes que o detalham. A ênfase em corpos esculturais e em cabeleiras soberbas parece atenuar o desassossego e a ironia e propor uma outra leitura para os textos. As ilustrações destacam novos contornos dos corpos aflitos e das histórias de vidas comuns atormentadas pelo medo da solidão e pela carência de toques de ternura, sensações intensas e segurança. A presença dos desenhos no livro talvez queira suscitar, mais do que o simples diálogo com os textos escritos, uma outra escuta que o título Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor! procura também alcançar".
(Prefácio de "Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor!" * Professora do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas. Pesquisadora 1 do CNPq).
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