Langston Hughes anteviu Obama no poder, há 85 anos
(Por: Carlos Marchi, do Estadão).
"Ser negro, homossexual e comunista era uma conta muito alta para pagar nos Estados Unidos das décadas de 1930 a 1950. Mas Langston Hughes, que muitos consideram o maior poeta negro americano, pagou essa conta com juros, ao profetizar, com talento e brio, que os negros ocupariam o centro do poder - adivinhou Barack Obama há 85 anos. Desconhecido no Brasil, Langston foi um pilar cultural da luta pelos direitos civis e ajudou a disseminar, nos Estados Unidos, o conceito da negritude, criado pelo poeta e ex-presidente senegalês Léopold Sédar Senghor, e que teve suas raízes iniciais fincadas apenas na Europa ariana.
O fenômeno Barack Obama começou a nascer em muitas fontes da alma negra americana, mas uma de suas raízes mais profundas é visível na obra de Langston. Só o seu poema I, Too, escrito em Gênova, Itália, em 1924, enquanto ele esperava um passaporte novo, é suficientemente premonitório para consagrá-lo como autor da mais singela certeza do dia em que os negros alcançariam o poder, simbolicamente sentados à mesa da sala. Nesse curto poema, Hughes parece relatar a própria saga do povo negro americano, das catacumbas do preconceito até a ascensão ao poder máximo.
Talvez Obama não tivesse chegado à Presidência se fosse branco, mas ele nunca usou objetivamente a cor para ascender, nunca pretendeu encarnar uma revanche (ou vitória) dos negros americanos. Mas mesmo sem querer, acabou sendo o personagem da volta por cima, sem nunca ter sofrido na pele o impacto da segregação. Quando nasceu, em 1961, a união de seus pais jamais seria oficializada se o pai, um economista queniano negro, fosse americano, já que os casamentos inter-raciais estavam proibidos nos Estados Unidos. Em seu poema premonitório, escrito, 37 anos antes, Langston pregava a luta inflexível pelos direitos dos negros sem fraquejar no amor pela América, a mesma reverência à pátria que Obama, sem nunca ter enfrentado a aridez da segregação, exibe hoje.
Langston separava as coisas. Os negros odiavam a segregação, mas amavam a sua pátria, os Estados Unidos, que eles, tão egoisticamente quanto os brancos, chamavam de "América", como se o continente descoberto por Colombo começasse nos grandes lagos e terminassem na trajetória do Rio Grande. A poética de Langston é errática, nesse sentido. No poema Christ in Alabama (década dos 30), imagina um "Cristo crioulo" pregado na "cruz do sul" (sul dos Estados Unidos, não sul do mundo). Já em Always the Same (idem), ele adere a um sentimento internacionalista e compara os negros das docas de Serra Leoa, das minas de diamante da África do Sul, das plantações de café do Haiti e de bananas na América Central, das cidades do Marrocos aos que sofrem nas ruas do Harlem. E sentencia: "(Sempre) Explorados, surrados, roubados, alvejados e mortos."
Homossexual assumido, Langston respirava poesia. Próximo da morte, se perguntou o que é poesia. E respondeu-se: "É a alma humana por inteiro, espremida como um limão, gota por gota, gerando palavras atômicas." Cobrava que a poesia é uma arte a ser praticada no limite, como se as palavras devessem operar como o fio amolado da faca: "Enforque-se em suas próprias palavras, poeta; do contrário, você está morto." Distribuiu golpes desse gume cortante nas três grandes lutas que sustentou na vida - desde a esgrima com o pai para escolher a carreira até o enfrentamento das pérfidas barreiras da segregação e, por fim, a luta surda contra o preconceito à homossexualidade, numa época em que ela suscitava bem mais que um especulado ato imoral.
James Mercer Langston Hughes nasceu em Joplin, Missouri, em 1902, de pais que já descendiam de casamentos inter-raciais, como Obama, mas foi criado na comunidade afro-americana, num ambiente bem diferente do personagem tardio de sua saga premonitória. Como a Obama, o poder não lhe era completamente estranho: seu tio-avô John Mercer Langston foi o primeiro negro a ser eleito para o congresso estadual da Virgínia. Ainda assim, quando se divorciou, seu pai, James Nathaniel Hughes, não suportou os dilemas da segregação: foi para o México e depois para Cuba (como o pai de Obama que também saiu dos EUA após divorciar-se da mulher, embora não tenha sido tangido por motivações raciais).
A sua obra revela duas profundas conexões: uma, com o passado americano; outra com o que ele chamava de "maravilhoso mundo dos livros". Não sem razão. Morou em nove Estados americanos, além do México. Viajou o mundo muitas vezes, algumas como marinheiro, outras como artista. Foi um globe-trotter das artes. No México, dividiu quarto com o fotógrafo Henri Cartier-Bresson; na cobertura da Guerra Civil Espanhola, viajou com Nicolás Guillén. Em Paris, conheceu Pablo Neruda e Bertolt Brecht. Adiante, trabalharia com Kurt Weil. Conheceu muitos países da África, União Soviética, China, Japão. Na vida, foi marinheiro, florista, trabalhou em lavanderia, em criação de ostras e como assistente de historiador.
Como Obama, que viveu um período com o padrasto na Indonésia, Langston também foi passar um tempo com o pai no México. Ele tinha só 17 anos e nesse período os dois discutiram muito sobre a carreira. O pai queria que ele estudasse engenharia numa universidade mexicana; ele queria ser escritor, profissão que o pai rechaçava. Langston venceu: entrou para a Lincoln University e, depois de formado, foi morar no Harlem, em Nova York, onde viveria por muito tempo e produziria a maior parte da sua obra - nesse aspecto, nada a ver com Obama, que nunca compartilhou espaços com as comunidades negras.
Langston foi fortemente influenciado pelo movimento de renascimento do Harlem, que brotou em 1925. Por toda a vida criticaria com aspereza os princípios comportamentais da classe média negra americana, que evitava rechaçar os valores da cultura branca; para ele, os negros deveriam assumir valores de uma cultura ancestral essencialmente negra. Isso era claro no julgamento cortante que fazia das instituições criadas pelos brancos: "Que a Justiça é uma deusa cega/ é uma coisa que nós, negros, já sabíamos/ a bandagem que ela usa esconde duas chagas pustulentas/ onde antes, talvez, tenha havido olhos."
Nos anos 1930, ele ajudou a fortalecer, nos Estados Unidos, o conceito de negritude, nascido para responder ao colonialismo europeu na África. Ao longo do século 20, publicou livros de poemas, ficção e não-ficção; engajou-se no Partido Comunista Americano e foi investigado pelo Comitê de Atividades Antiamericanas. No Brasil, virou enfant-gaté das publicações de esquerda, como a Revista Acadêmica, editada por Murilo Miranda nos anos 1930, que divulgou seus primeiros trabalhos traduzidos para o português. Nos Estados Unidos, sendo não mais que um mulato, tornou-se ídolo dos negros.
Mesmo sendo claramente um mestiço de cabelo levemente crespo, foi irreversível para Langston Hughes uma clara opção pelo engajamento como um artista e um cidadão afro-americano, muito antes que a expressão se consagrasse mundialmente. Não só por ter vivido no Harlem, mas por ter produzido uma obra que embalava a negritude e incensava a América - fundamento da ideia "a América para os negros", da qual Obama se tornou filho dileto. Suas cinzas estão depositadas sob um medalhão africano que reproduz uma cosmogonia, num jazigo incrustado no piso da entrada do auditório Langston Hughes, do Centro de Pesquisa de Cultura Negra Schomburg, no Harlem, bem no epicentro do universo que ajudou a tornar respeitado.
Um Poema.
EU, TAMBÉM -
Eu também canto a América/
Eu sou o irmão mais escuro,/
Mandam-me comer na cozinha quando há visitas, mas rio-me,/
como bem e fico forte./
Amanhã, sentar-me-ei à mesa quando houver visitas./
Ninguém ousará dizer-me, então:/
"Vai comer na cozinha."/
Além disso, verão como sou belo e se envergonharão - eu também sou América". (Tradução de Abgar Renault).
Comentários
Este é o Langston Hughes que eu adoro!