*A arte de escrever e dar nome às coisas - Conferência de abertura do II Seminário Educação e Ancestralidade 2014
Por
Cidinha da silva
INTRODUÇÃO
Nominar é principiar o mundo das
coisas. Em literatura, então, os nomes são fundamentais: títulos de textos, de
livros, nomes de personagens. Elisa Lucinda afirma que nomear um texto ou
personagem é batizá-lo, inscrevê-lo no mundo.
São conhecidas as performances de
Fernando Sabino e Clarice Lispector como pessoas muito habilidosas para dar
nome a crônicas, contos, romances, etc. Contam que os dois trocavam telefonemas
para dizer: "dessa vez escolhi um título insuperável" ou, "tenho
um título ótimo, mas ele é mais adequado a você do que a mim, eu
empresto", e por aí seguia a brincadeira, materializando a importância que
os dois davam aos nomes das coisas.
O nome de quem escreve também é
importante, no caso das pessoas negras ou de outras diminuídas em sua
humanidade por processos como o racismo, nome e sobrenome são essenciais. A
desumanização chega a ser tanta que muitos profissionais negros optam por dispor
a função, profissão, título ou ofício antes do nome. Por exemplo: escritora
fulana, jornalista sicrano, socióloga peixana.
São marcas também de um tempo histórico
em que essa escolha emitia pelo menos duas mensagens. A primeira: profissionais
negros também existem. A segunda: o mundo ordenado por padrões racistas não
reconhece os profissionais negros e, mulheres e homens negros, por esse motivo,
propalam seu título, sua profissão, etc. Essas duas concepções se fazem
presentes e vivazes no tecido social brasileiro desde a década de 80 do século
passado, muitas vezes adjetivadas pela palavra negro, que completa a expressão
autoexplicativa como fosse um cartão de visitas identitário: o jornalista negro
fulano de tal, a escritora negra peixana.
São leituras e ações advindas de um
tempo histórico de longa duração, o período contemporâneo de resistência ao
racismo. De minha parte, ser pensante da década de 10 deste século, leio-as com
outros olhos. Olhos desembaçados e beneficiados pelos erros e aprendizados das
gerações precedentes que permitem compreender meu próprio desconforto com os
textos e reclames, nos quais, para referir-se a um profissional negro, designava-se
e designa-se sua profissão antes do nome próprio.
A meu ver, este é um jeito
servil-persistente de pedir licença à casa-grande. Eu me recuso,
peremptoriamente, a pedir licença para existir. Eu existo e meu nome me
inscreve no mundo.
Um tigre não anuncia sua tigritude. Ele
ataca! Assim nos ensinou Soyinka. Meu desafio nesta conferência é mostrar como
construo minha própria tigritude na obra literária que produzo há sete anos com
extremo zelo e trabalho minucioso no cotidiano da escrita.
PARTE
2
Nas tradições africanas vivenciadas no
Brasil, o coroamento iniciático é o momento em que a pessoa iniciada recebe o
nome e nasce para uma nova vida.
Na Capoeira Angola o comportamento e o
estilo de jogo do praticante engendram novos batismos. Os inseparáveis alunos
de Pastinha, mestres João Grande e João Pequeno. Os mestres mandingueiros mais
novos, Cobra Mansa e Jogo de Dentro. Ou ainda, o capoeirista espetaculoso e
extravagante nominado como "o filho do pavão." Reparem bem o cuidado
do mestre, o iniciante não é um pavão, nobre, belo e imponente, é o filho, um
aspirante a pavão. A escolha dos nomes requer precisão, sempre.
No ativismo político existem pessoas
que mudam de nome a cada nova fase da vida. Na primeira afirmam o nome civil
ocidental seguido do sobrenome, em qualquer situação. Na segunda adotam um nome
africano, pleno de significados. Na terceira, despois do grande encontro
proporcionado pelo candomblé, acoplam parte do nome de iniciado ao nome social
ou, no caso dos homens, principalmente, incorporam o título honorífico que
recebem na casa de asè, muitas vezes um mero lustrador de ego para inflar os
ogãs, dentro e fora da casa.
Na literatura, o nome do livro ou do
texto, é quem primeiro atrai o leitor: Fala, amendoeira! De Drummond. Contos de
vista, de Elisa Lucinda. Afrografias da memória, de Leda Martins. Coração
andarilho, de Nélida Pinõn. Cacos para um vitral, de Adélia Prado. Cidades
invisíveis, de Ítalo Calvino. Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus.
Angu de sangue, de Marcelino Freire. Cem anos de solidão, de Garcia Marques. Assim
se benze em Minas Gerais, Os tambores estão frios e o belíssimo, Mundo
encaixado, três obras de Edimilson de Almeida Pereira. Ainda deste autor
monumental: Rua Luanda, As coisas arcas, Zé Osório Blues, Águas de contendas
e uma miríade de nomes fantásticos.
Ao ouvir este conjunto de títulos,
somos levadas a viajar no tempo, a formar imagens, a reviver histórias,
revolver lembranças, cultuar memórias, a também navegar por mares nunca dantes
navegados. O mar de Pessoa, talvez. Mar formado pelas lágrimas de Portugal, a
quem perguntaríamos, "oh mar salgado, quanto de teu sal foi sangrado dos
corpos africanos transportados para o Novo Mundo e de seu povo saudoso e
dolorido que conseguiu manter-se em África até o embarque do próximo navio
negreiro?"
Meus títulos autorais mais maduros e
preciosos são de três livros de crônicas: Oh, margem! Reinventa os rios, de
2011; Racismo no Brasil e afetos correlatos, de 2013, e, Baú de miudezas, sol e
chuva, no prelo.
O primeiro é um título-evocação, uma
chamada para que quem está à margem estabeleça outro tipo de diálogo com a
nascente dos rios, seus próprios rios.
O segundo título configura-se como constatação
que consegue assumir forma lapidar na expressão afetos correlatos ao racismo,
um achado literário, histórico, sociológico, dissecador da fisiologia do
racismo no Brasil.
O terceiro é o baú que além de miudezas
guarda sol e chuva, revela frescor, fertilidade e luz, é também um baú de
responsa.
Embora a temática racial esteja muito
presente em minha obra, ela não está restrita a isso, tampouco se filia ao que
algumas autoras e autores negros, notadamente do Rio de Janeiro, veem intitulando como literatura de combate ao racismo. A minha literatura não é de
combate ao racismo. Minha literatura é de promoção do humano, do ponto de vista
afrocentrado da mulher negra que sou.
Ouvi Tony Morrison contar em 2006,
durante aquela que talvez tenha sido sua primeira passagem pelo Brasil, em
Paraty, que um amigo branco, muito querido e preocupado com ela, aconselhou-a a
livrar-se da definição de si e de sua obra como afroamericana, porque ela já
havia transcendido aquilo, não precisava mais dizer que fazia literatura negra,
que isso, inclusive a impedia de conquistar um público maior. A autora de O
olho mais azul então retrucou: “você consegue ler o que escrevo e pensar que
foi escrito por um homem branco ou mesmo por uma mulher branca? E deixou-o a
refletir, como deixo a distinta audiência a pensar sobre a tigritude de Toni
Morrison.
O filme israelense The lemon tree, O
limoeiro, de Eran Riklis, quando aborda uma situação envolvendo duas vizinhas,
uma palestina e outra judia, escapa do lugar comum da guerra secular entre
judeus e árabes.
O roteiro, aparentemente
baseado em fatos reais, utiliza a guerra como pano de fundo para mostrar que
existem pessoas dentro de todos os seres chamados de inimigos. Pessoas
diferentes, mas com desejos comuns e simples de viver em paz a própria vida, de
buscar a felicidade, seja num Limoeiro ou numa vida repleta de luxo. A maneira
como o diretor mostra isso, principalmente comparando a vida das duas
mulheres, uma árabe e outra judia, é muito feliz. De um lado do muro uma mulher
culta, bem cuidada, solitária, charmosa, vaidosa, com problemas com os filhos.
Do outro lado da cerca outra bela mulher, também vaidosa, viúva, solitária, com
problemas de relacionamento com os filhos e vivendo dilemas dentro de uma religião.
A amizade entre as vizinhas
parece inverossímil diante da guerra, mas, em silêncio, as duas trocam olhares
reveladores da humanidade e da cumplicidade de ambas.
A luta que Saima, a
personagem palestina, enceta para preservar seus limoeiros depois que o
Ministro da Defesa de Israel muda-se para a casa vizinha e a Força de Segurança
Israelense logo declara que suas árvores frutíferas colocam em risco a
segurança do ministro, e, por isso, precisam ser derrubadas, é comovente. Saima
leva o caso à suprema Corte de Israel para tentar salvar a plantação de limões.
Enfim, não só a guerra destrói as pessoas e nós saímos do filme como pessoas
mais plenas, porque nossa humanidade foi revisitada e alimentada pelas lentes
do cinema e pelos limoeiros de Saima.
Em um média metragem, Na alegria e
na cebola, do nigeriano Sani Elhaj Majori, um homem africano planta cebolas na
propriedade de sua família. Sozinho cuida da plantação que é responsável pelo
sustento de todos e, dia após dia, o roteiro acompanha sua rotina de pequeno
agricultor, desde o preparo da terra, do esterco de gado que serve para
adubá-la e quando diluído em água e borrifado nas plantas atua como pesticida
natural, até os momentos da colheita, transporte das cebolas, comercialização e
contagem do pequeno lucro financeiro.
O plantador de cebolas trabalha sozinho
durante horas, mas, crianças pequenas (uma delas não deve ter mais do que três
anos), supostamente filhas, o acompanham e observam em todos os gestos e são
instadas a colaborar em tarefas leves, ao tempo em que apreendem o
funcionamento de cada etapa do processo. É belo o momento em que ele se alegra
ao analisar e reconhecer os bons brotos que arrebentam a terra e as crianças compreendem
e parecem também aprender a reconhecê-los.
Na cena final do filme, o
agricultor transporta as cebolas até a cidade, procura pelos atravessadores,
negocia com eles e, ao fim das contas compara os grandes maços de notas que o
atravessador ganhará ao comercializar seu produto e o pequeno montante que lhe
cabe.
O racismo tem impedido que as
cebolas do nigeriano Majori sejam como os limoeiros do israelense Riklis, ou
seja, que possam emocionar o mundo por sua humanidade simples e transbordante.
De que maneira isso acontece? Basta dizer que o primeiro filme, o israelense,
chega às grandes salas do circuito comercial do cinema brasileiro, aquelas em
que os ingressos custam entram 20 e 30 reais, pelo menos. O filme africano só é apresentado
em mostras específicas de cinema africano, pouco divulgadas, resultados de
editais, por vezes exibidos com recursos técnicos precários em salas abafadas e
desconfortáveis. São filmes que não se valem de resenhas motivadoras nos
grandes jornais, anúncios na TV e em revistas impressas.
A minha literatura pretende ser
como o plantador de cebolas de Majori, quer apresentar a humanidade das pessoas
negras, sua história, sua memória, sua cultura, sua ancestralidade, seu jeitão,
seu colorido, sua polifonia rítmica, corpórea e verbal na vitrine universal.
Por isso considero que o enquadramento do meu fazer literário como literatura
de combate ao racismo é insuficiente, enrijecedor, limitador da potência
literária do que produzimos.
PARTE 3
Meu livro Racismo no Brasil e
afetos correlatos é dedicado a 21 grandes damas negras.
São 21 honoráveis senhoras
escolhidas para a primeira saudação do livro.
Sueli Carneiro, a que abriu todas
as portas com a certeza do ferro, a força do vento, a fluidez da água e o
acalanto do mel.
Luiza Bairros, a coroa guardada
por sabres e tigres, o coração de água protegido pela muralha de pedras.
Lira Marques, que fazia música com
nossos rostos no barro, que grafava a memória ancestral ao queimá-lo.
Nazareth Fonseca, a professora generosa
que acolheu, acalentou e orientou uma
geração inteira de jovens mulheres negras na Belo Horizonte do final dos anos
80 e início dos 90.
Leda Martins, o exemplo.
Inaldete Pinheiro que quando ouviu
a escritora, menina entusiasmada descobrindo o Baobá, ofereceu-lhe uma muda que
há quase 30 anos a espera no Recife.
Quem sabe por esse caule chegou à sua vidaa mais bela flor da rua do
cajueiro?
Nô Homero, a amiga do conselho
certeiro “escreva, Cidinha, escreva, não importa que seja só para você!”
Mazza, a primeira editora, aquela
que fez o sonho florescer.
Dora Bertúlio e Maria de Lourdes
Teodoro, rainhas elegantes. Esta, de
dorso tão esguio, coluna ereta e texto fino, diamante no cascalho da mesmice
infecunda. Aquela, o vernáculo perfeito, erres profundos, lembrança do canto de
Elizeth.
Ana Célia da Silva, a alegria mais
sincera com o êxito de seus pares, puro amor fraterno.
Petronilha Gonçalves, a
serenidade.
Amélia Nascimento, a que centrou a
cabeça e ensinou que ser guerreira pode ser uma marca temporal, não precisa ser
uma camisa de força.
Léa Garcia, Vanda Ferreira e
Helena Theodoro, gratos encontros cariocas.
Leci Brandão, a força do Ogum que
vai à frente e também guarda as costas.
Zezé Motta, aquela que nos fez
acreditar que éramos (e somos) invenções possíveis e poderosas.
Áurea Martins, a voz rouca, firme
e afinada, perfeita na extensão delicada do samba-canção que faz adormecer ou
acordar, a depender do momento.
MakotaValdina, senhora das terras
banto onde descansa a coroa do rei.
Paulina Chiziane, convergência de
águas, requinte de linguagem e da tradição que sustenta o poder da renovação.
Parte 4
Quero agora apresentar minha
tigritude em alguns excertos literários: os três primeiros escolhidos no
romance infantil/juvenil Kuami, de 2011.
Depois uma crônica do livro Oh, margem! O prisioneiro. Depois, duas
crõnicas de Racismo no Brasil e afetos correlatos, Os mortos e Anderson Silva
tomba e Cauby canta Cavalo Marinho. Por fim, duas histórias do livro Baú, Durga
e a senhora das águas e Duas mulheres numa rua íngreme.
Nzaambi ye kwaatesa!
* Realização da Rede Africanidades - FACED/UFBA
Comentários