Ana Paula Maia vende livros porque é negra, ou nos lembramos que ela é negra como justificativa às vendas marcantes? A propósito, ser escritora negra é sinônimo de venda de livros no mercado brasileiro?


Em artigo publicado na Folha de São Paulo, " A real da literatura fantástica", o escritor Santiago Nazarian ao discutir os motivos de (in) sucesso (em termos de vendagem) de três livros abordados no texto, argumenta que: "Talvez o mais bem-sucedido desses três tenha sido o livro de Ana Paula (Maia), não apenas pelo ótimo texto, mas exatamente por não conter elementos fantásticos e se afastar das convenções do que se chama terror (além, talvez, de carregar uma bandeira involuntária, por ter sido escrito por uma mulher negra).

Não tenho cabedal para discutir literatura de terror, mas posso e quero problematizar a suposta "bandeira involuntária", possivelmente carregada por Ana Paula Maia, por ser uma escritora negra, e o impacto de carregá-la na venda de seus livros.

Minha argumentação se baseia em dois pontos: o primeiro, a identidade racial de APM e a possível validação disso por meio de uma obra e de um discurso identitário. Segundo, a nova realidade do mercado livreiro que instou (ou obrigou) livrarias grandes e médias a criarem uma micro-seção dedicada às escritoras negras.

Em relação a APM, cumpre primeiro contar a vocês que mantemos relações cordiais, não somos amigas (não porque tenhamos qualquer coisa uma contra a outra, simplesmente porque não convivemos o suficiente para construir ou não uma amizade) e eu não tenho qualquer prerrogativa para falar em nome dela. Falo em meu próprio nome, a partir de minhas percepções.

Meu primeiro contato com a autora foi indireto, em 2013, no episódio da delegação brasileira indicada à Feira de Frankfurt, quando entre 90 escritores do país havia apenas dois negros, Paulo Lins e Ferréz, este, aliás, omitido por boa parte da imprensa (inclusive a imprensa negra), mesmo que Ferréz se compreenda e se reivindique como um homem negro.

Naquela oportunidade, a então ministra da igualdade racial, Luiza Bairros, por meio de tratativas com outra ministra, a da cultura, Marta Suplicy, conseguiu incluir mais seis escritores negros numa lista auxiliar. Entre esses nomes estavam Ana Maria Gonçalves, Ricardo Aleixo e Conceição Evaristo. Se a memória não falha, esses foram os nomes sugeridos pela ministra Luiza Bairros, aprovados pelo curador, Manuel da Costa Pinto, a despeito de um conjunto de nomes maior. Creio que os outros três autores contemplados nessa lista que apresentou o número mirabolante de seis autores negros que somados aos dois da lista oficial constituíram 8.8% de 90 autores, foram indicados pelo próprio curador. Entre eles, disso me lembro com certeza, estava Ana Paula Maia.

Dado o interesse que nutro por conhecer autoras negras, busquei saber quem era APM, que eu só conheceria em 2017 ou 2018, quando fizemos juntas a Flipelô, em Salvador.

Ana Paula Maia é negra, isso é inequívoco, tanto para nós que a observamos, lemos e admiramos, quanto para ela mesma, contudo, diferente de outras autoras negras, APM não se reivindica negra, não é um ponto de sua vida e trajetória que ela fique demarcando. Em decorrência da compreensão da forma como ela se situa no sistema literário, perde sentido a afirmação de que um livro de sua autoria poderia vender mais porque ela é uma autora negra. APM não se vale desse bônus, tampouco o mercado cola essa etiqueta em sua obra.

Uma pessoa negra, nós aprendemos com o Movimento Negro dos anos 1970 e 1980, é aquela que se identifica como negra ou é tratada como tal. O sistema literário, por sua vez, nos mostra que em termos mercadológicos, é preciso que você se reivindique negra, veicule um determinado discurso atribuído às escritoras negras, entre numa caixinha e fique de lá olhando o mundo e conversando com ele.

Ana Paula Maia não faz nada disso e imagino (é só uma suposição) que ela deva ter urticária ao ouvir a expressão "lugar de fala" e, principalmente diante da sugestão de que seu trabalho vende por esse motivo, por ocupar certo “lugar de fala”. Os livros de APM vendem, porque como próprio Santiago Nazarian asseverou, têm um texto ótimo. Eu diria mais, trata-se de um texto surpreendente e arrebatador, que nos rouba o fôlego a cada parágrafo.

O segundo elemento de minha argumentação é a recém-criada seção "literatura de mulheres negras" nas livrarias, uma espécie de "frango com tudo dentro", no qual se misturam autoras de livros de auto-ajuda, de empoderamento, abordagens teóricas para todos os níveis de exigência, e também, literatura. Livros escritos por autoras brasileiras, estadunidenses, africanas e da diáspora, notadamente aquelas que tiveram ou têm destaque nas principais plataformas e festivais legitimados e incensados pelo sistema literário, e que também gozam de lugares destacados no sistema midiático. Eu adoro essas micro-seções, não se enganem. Acho importante que existam, torço (e trabalho) para que cresçam e tornem-se mais estruturadas, menos “armarinho de secos e molhados”.  Visito-as com frequência, vasculho, costumo saber que autoras as compõem e posso afiançar que nunca encontrei um título sequer da excelente bibliografia de APM.

Desse modo, acho um equívoco associar o sucesso de mercado de um livro de terror de Ana Paula Maia, ainda que de maneira indireta e involuntária, ao fato de ela ser negra. Não orna.


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