Negras e negros no Jabuti 2019


Li depoimentos e postagens de colegas negros finalistas do Jabuti 2019, a maioria situada na lista dos dez, uns poucos na lista final de cinco, no conteúdo, uma constatação de como o jogo de escolhas é operado. Alguma dor, alguma surpresa, muita frustração, porque, afinal, cada uma e cada um sabem do peso do labor diário para construir um bom texto literário e quando esse texto é validado pelo cânone em alguma etapa de um processo seletivo, alimenta-se a esperança de que sejam ultrapassadas as etapas seguintes e que aquele trabalho literário seja, finalmente, reconhecido, validado e premiado. É uma esperança, apenas.

Minha aposta pessoal, feita com várias amigas que lerão essa crônica e que não me deixarão mentir, era de que num ano em que Conceição Evaristo foi homenageada teríamos vários semifinalistas negros (acertei); o número de finalistas negros diminuiria sensivelmente na lista final (acertei de novo, infelizmente) e apostei em vencedor negro para umas duas categorias, não concomitantes, “lógico”; se ganhasse em uma, outro negro não levaria em outra (acertei em parte, mas errei no sentido de que nenhuma das minhas apostas levou o jabuti).

Pasma, leio texto festejado numa mídia negra e reproduzido por muita gente crítica: “O Jabuti nunca foi tão preto”, porque Conceição Evaristo foi a homenageada do ano, Lázaro Ramos foi o mestre de cerimônias e “Jeremias: Pele”, de Rafael Calça e Jefferson Costa, recebeu o Jabuti na categoria quadrinhos. Ah… me desculpem, mas nos contentamos com muito pouco.

Todas as honras e glórias a Conceição Evaristo ainda serão insuficientes, mas, o fato de a homenagearem seguidamente, não pode nos impedir de pensar também, que isso pode se configurar como um cala-boca dado pelo mainstrean, algo como “já estamos homenageando Conceição, não está bom para vocês?” Havemos de convir que homenagear Conceição, a maior entre nós e também nossa mais velha, é uma forma encontrada por esse pessoal de aplacar nosso “espírito reclamão”. E vejam que cola, chegamos a achar e a proclamar que esse foi um “jabuti especial, o mais preto de todos”. Se olharmos edições anteriores, pelo menos nos últimos cinco anos, notaremos que em uma categoria, um negro ou negra leva o Jabuti a cada edição, pelo menos um (quase sempre um, único), então, caríssimas e caríssimos, a premiação para o Jeremias não foge à regra. Teríamos real novidade se, também para fazer jus à trajetória da escritora homenageada, número significativo e atípico de escritoras e escritores negros fosse premiado (ao mesmo tempo). A mídia hegemônica até tentaria desqualificar os premiados negros e insinuaria que isso só ocorreu porque Conceição era homenageada, mas nem tivemos chance de fazer esse debate. Manteve-se a regra dos anos anteriores, um preto por vez.

Agora vamos festejar e avaliar que qualquer coisa mudou na assimetria das relações raciais no Brasil porque o competente, premiado, espirituoso, profissional impecável e simpaticão Lázaro Ramos foi contratado para realizar um trabalho como mestre de cerimônias da entrega de um prêmio? Por favor, me façam uma garapa! A gente ganha mais se discutir porque Lázaro Ramos e Camila Pitanga não foram os mestres de cerimônia na Copa do Mundo no Brasil, em 2014, em favor de um casal de artistas brancos.

A justa, muito justa, justíssima homenagem à Conceição Evaristo como escritora do ano na edição do Jabuti 2019, a contratação profissional do irretocável Lázaro Ramos como mestre de cerimônias, a premiação de “Jeremias: Pele” de Rafael Calça e Jefferson Costa na categoria quadrinhos, não têm nada de especial, nada a festejar. Não existe nenhum enegrecimento fenomenal no processo, pelos motivos expostos nos parágrafos anteriores.

Vamos fazer cálculos de matemática básica? Quantas escritoras e escritores negros foram inscritos e habilitados no certame? Quantas editoras negras? Desses, quantos chegaram aos dez semifinalistas? Quantos passaram pelo funil e lograram estar entre os cinco finalistas? Quantos (negras, negros, editoras negras), efetivamente ganharam o prêmio? Depois de feitas essas continhas, a gente pode afirmar (ou não) que “o Jabuti nunca foi tão preto”!

Se quisermos sair da matemática básica e complexificar um pouco as coisas, poderíamos aventar possibilidades de critérios para que um livro esteja entre os dez semifinalistas, mas não passe à categoria seguinte, dos cinco finalistas. Poderíamos, talvez, pensar que estar entre os dez seria algo como “bem, fizemos nossa parte, trouxemos vocês até aqui, agora vocês se virem” e, na hora H, na hora de “se virar” sozinho (quando é que alguém se vira sozinho quando depende de instâncias de validação externas a seus pertencimentos como sujeito sócio-político? de articulações do sistema literário, das quais os negros não participam porque não têm e não são moeda de troca?), na hora da disputa entre os cachorros grandes, só “Jeremias: Pele” conseguiu. Os outros trabalhos de autoria negra não foram bons o suficiente? Mas, pera, você está dizendo que porque negros não ganharam a comissão foi racista? Tem o mérito… Quem constrói o mérito? Em que consiste o mérito? Vamos abrir a caixa de Pandora dos critérios de classificação e premiação?

E mais não digo, aliás, repito uma coisa deliciosa que aprendi no tempo vivido em Soterópolis: “só te digo uma coisa, eu não te digo é nada”!

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