Cidinha da Silva: Entrevista para Asymptote Journal (parte 2)

 


por Daniel Persia e Ana Luiza de Oliveira e Silva

 

1.    Como é o seu processo criativo? Você tem um ritual diário de escrita?

Meu processo de produção literária tem dimensões práticas, criativas e outras que são da ordem do imponderável. Em termos práticos sou uma escritora relativamente organizada e disciplinada, eu me sento e escrevo nos horários que me determino a fazê-lo. Não tenho problemas de “tela em branco”, tenho questões relativas à falta de tempo para escrever. Os horários para a escrita dependem do volume de trabalhos que preciso dar conta para garantir a sobrevivência (preparar aulas, palestras, oficinas, cursos, ministrá-los), leituras, estudos, viagens, administração da loja virtual e da divulgação dos meus livros. O tempo que sobra para a escrita é muito curto, resume-se a algumas horas semanais que costumam acontecer pela manhã bem cedo, logo que acordo. Escrevo muito pouco por impulso, costumo escrever mais em função dos livros que estou pensando ou que estão em processo de organização. Escrevo bastante por encomenda também, para publicação em periódicos da imprensa nacional, principalmente, mas também textos de teatro e ensaios.

 Quanto à dimensão criativa da escrita, gosto de escrever pela manhã, são as melhores horas do dia para mim. Escrevo no meu computador de mesa, sentada em uma cadeira confortável, num escritório amplo, com porta de vidro para a varanda e por lá o sol entra, vejo-o pelo menos. Coleciono dicionários e eles ficam ao alcance da mão para consultas. Meu rendimento maior é mesmo pela manhã e essa manhã costuma durar entre quatro e seis horas (quando estou em processos mais intensos de produção), mas a partir da 4ª hora, o que faço mesmo é reler, revisar, consultar dicionários. Leio tudo em voz alta, várias vezes ao longo dos processos de escrita e edição do texto, é assim que acerto o ritmo e a harmonia. Quando estou maturando a ideia de um livro novo costumo fazer muitas anotações em cadernos, coisas esparsas como nomes de personagens, começos de crônicas ou contos. Costumo anotar ideias, das vezes em que escrevo frases, quase invariavelmente elas se desdobram em um ou dois parágrafos naquele momento mesmo do registro e ali já está o início do texto.

 Tenho algumas ideias para escrever romances e nesses casos tenho anotado o tema inteiro, pelo menos o que acho que é o tema inicial e desenvolvo algumas cenas nesses cadernos, vou aos cadernos a qualquer momento que essas cenas rondem a minha cabeça, perco muita coisa porque são momentos únicos, se não registro na hora quando decido fazê-lo percebo que perdi muita coisa. E perco muita coisa mesmo porque costumo adiar o registro para não sucumbir à vontade de me jogar nesse exercício, vontade de não parar de escrever, mas minha cabeça disciplinada me impede, pois preciso seguir uma rotina de trabalhos outros. Quando vou para o computador é para desenvolver o livro mesmo.

 O imponderável acontece nos sonhos (dos quais pouco ou nada me lembro), nas conversas, nas trocas com as pessoas, na observação do mundo, na interação com as pedras, as plantas, as flores, a água, a terra e o fogo, com a fumaça também, na intuição à qual aprendi ao longo dos anos, de exercícios e de testes de vida, a prestar atenção integral e a seguir confiante. É pela intuição que a espiritualidade se comunica comigo.

2.    Como você construiu as personagens que aparecem em Marigô?

E Em minha opinião, a crítica interna feita por membros de um grupo ou comunidade e autocrítica são práticas muito saudáveis e nos ajudam a não repetir erros que criticamos quando cometidos por outros. Acho que é como tomarmos o risco de sermos melhores do que aquilo que criticamos como algo ruim. Nos processos de construção identitária é muito comum cometermos excessos para compensar as faltas históricas e atávicas que nos deixaram fraturas dolorosas. Existem situações em que podemos rir de nós mesmos, um riso vindo de dentro e que pode apontar esses eventuais excessos, como aquelas roupas que usávamos na adolescência para afrontar os pais, para nos diferenciarmos do restante do grupo, e hoje, ao olhar para trás nos perguntamos, “como pude ser tão ridícula”? As personagens de Marigô foram construídas nessa ambiência, com a intenção de criticar um excesso pela ferramenta do humor.

3. Fica aparente na leitura de suas crônicas, inclusive Marigô, que você faz uso de ironia, sarcasmo, humor, etc. Qual o papel desses instrumentos de linguagem na sua literatura?

São meus suportes, são as escadas para que eu chegue onde quero para me comunicar com quem me lê.

4. Pensando no universo inteiro de Sobre-viventes!, vemos que algumas personagens, como Alice Walker e Assata Shakur, são reais, no sentido que são figuras históricas. Outras não necessariamente. Como você desenvolve essas personagens? Elas têm alguma base em pessoas reais?

As personagens reais costumam sê-lo mesmo, como essas que vocês mencionaram, Walker, Shakur, William Bonner e, de maneira geral, essas personagens estão nas crônicas, um gênero que nos permite um diálogo muito intenso com o agora e com o real. Existem outras personagens que não são reais, no sentido de existirem como individualidades-base na vida real, estas são arquétipos, fusão de várias coisas, pessoas, características, situações, são personas construídas para dizer o que quero. Tenho muito controle das minhas personagens (não sei se com os romances será assim) e isso é importante pra mim, são minhas criaturas, eu decido pra onde elas vão e como. Certa feita disse isso numa conversa literária e um crítico de literatura e um escritor presentes riram muito e trocaram olhares como a dizer: “coitadinha, ela ainda vai amadurecer e entender que um autor não tem controle das personagens”. E eu pensava: pode ser que eu mude de ideia, mas, por enquanto, acho que essa máxima, dita por muita gente que não tem experiência de escrita, não passa de um clichê. Respeito muito minha própria experiência e, nesta, minhas personagens são minhas criaturas e eu mantenho o controle, sob pena de ao perdê-lo fazer uma literatura que não gosto de ler, ou seja, uma literatura que se preocupa tanto com efeitos especiais e desfechos mirabolantes que perde a atenção necessária aos detalhes e às costuras que a construção de um processo consistente e convincente exige. Eu sou uma escritora que busca solidez, consistência, sem esquecer, contudo, que a pedra um dia foi água e a natureza das coisas permanece, mesmo quando elas mudam de forma.

5. Como você organizou o livro Sobre-viventes! ? Poderia falar um pouco sobre a dicotomia sobrevivente x vivente, implícita no título da coletânea?

Essa é a história do povo negro em diáspora, a gente sobreviveu e sobrevive às atrocidades impostas pelo racismo, pela exploração econômica e humana, mas a gente buscou e segue buscando, insistentemente, formas de afirmar nossa existência, de demarcar lugares para os viventes humanos que somos. Para existir a gente canta, dança, se alimenta junto, cuida uns dos outros, conspira, sonha, cultiva o humor, a poesia, a ironia (remédio santo para não engolir sapos); a gente afirma nossa humanidade, a despeito da ação incessante do racismo para destruí-la. O livro Sobre-viventes! Materializa esse jogo, esse caminhar no fio da navalha.

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