Menos hipocrisia no tratamento do funk, por favor!
Em julho de 2008 postei no blogue um artigo intitulado "Funk carioca: crime ou cultura?" e faz-se oportuno apresentá-lo novamente. A parada é a seguinte: há uma uma polêmica em torno da reivindicação de produtores culturais do funk, para que o ritmo seja reconhecido como movimento cultural. O tema é vasto e muito, muito complexo. Para discorrer sobre ele, usarei o exemplo de um conhecido baile funk que acontece toda sexta-feira numa favela do Rio, numa rua a céu aberto. É a rua que dá entrada à favela. Ao chegar, como todos os que chegam, fui saudada assim: "olha aí, olha aí, tem maconha de cinco e maconha de 10; coca de 10 e coca de 15. Farinha da boa, djamba da melhor qualidade". Se é que gravei bem o valor das ofertas. Há os guardas (do tráfico), jovens e senhores (vi uns quatro que seguramente tinham mais de 30 anos)portando rádios transmissores e aquelas armas que não sei dizer os nomes. Só sei que estilhaçam as pessoas como os soldados israelenses têm feito com as crianças, em Gaza. Começo a subir a rua e fico assustada com a discrepância entre o número de homens e mulheres, estimo 2 mulheres para cada grupo de 8 homens. Também me choca o cheiro predominante de algo que não é crack, tampouco maconha, lembra o crack, mas não é, talvez seja "merla", como chamam em Brasília, "pasta-base", como chamam em Montevidéu. Nos dois lugares, trata-se da mistura do bolo fecal da cocaína com solventes químicos encontrados em produtos de limpeza. Imagine-se o estrago que isso provoca no sistema respiratório. Quando vou embora, umas duas horas depois, o motorista de táxi que tenta me extorquir, menciona os valores que o tráfico entrega semanalmente à polícia para ficar "na paz". Ah... esqueci de dizer que toca funk por lá, um som ensurdecedor, dezenas de caixas de som detonam diferentes músicas, todas com letras picantes, e pelo menos naquele dia não tocaram funks em elegia aos traficantes - também existem, bem sei. Mas o que é o funk nisso tudo? Um detalhe, meu bem, trilha sonora,nada mais. Os problemas daquela rua chamam-se: falta de políticas públicas que gerem trabalho, renda e educação para a juventude negra - desculpem-me por informá-los, mas os brancos ali não ultrapassavam os dedos dos pés e das mãos de uma ou duas pessoas -, além da atuação ilícita da polícia, em conluio com os traficantes, para ficarmos nas duas questões mais graves. E o funk nisso tudo? Apenas trilha sonora. Para verificar in loco, basta voltar lá aos sábados, dia seguinte ao baile funk, dia de ensaio da escola de samba tradicional, na quadra, há uns 300 metros da tal rua. Tudo estará lá como esteve na sexta (olha aí, olha aí, tem maconha de cinco e maconha de 10; coca de 10 e coca de 15. Farinha da boa, djamba da melhor qualidade ), faltará apenas o funk. Nos bailes convencionais, que acontecem nas quadras das demais comunidades, o projeto de lei pede proteção do Estado, porque o braço armado dele costuma aparecer apenas para extorquir e não para enfrentar donos de equipes de som, por exemplo, que lucram com a promoção de brigas entre garotos que, majoritariamente, não têm nada a ver com o tráfico (o soldado do tráfico vai para o baile vender drogas e para fazer a "segurança" do local, não vai para brigar), mas blefam uma suposta ligação à facção "X" ou "Y" para se impor, para "impressionar as meninas". Isso não é novidade nas favelas e periferias, desde os anos 90, a turma que estuda as "galeras e gangs juvenis" nas grandes cidades brasileiras, já apontou o fenômeno. A polícia e a justiça precisam atuar sobre os promotores das brigas e todos sabem quem eles são. No mais, deixemos de hipocrisia, dizer que o funk é responsável pela hipersexualização das crianças da favela, parece conversa pra boi dormir. Alguém se dispõe a fazer uma análise séria dos efeitos do "programa da Xuxa" ao longo de quase três décadas, na hipersexualização das crianças e adolescentes brasileiros, das favelas e de todos os outros meios sociais? Ainda na linha do fim da hipocrisia, não se trata de "impor uma definição de cultura", como advogam os puristas contrários ao projeto, mas sim, de uma estratégia para fazer com que o funk migre das páginas policiais - onde é posto, intencionalmente, de maneira racista, inclusive -, para as páginas de cultura. Cultura de massa, fruto da indústria cultural e, como tal, passível de críticas, como a música sertaneja, o pagode romântico e os roquezinhos dos ídolos pop e da garotada de Malhação, dentre outros.
(Projeto quer definir funk como movimento cultural e gera polêmica - Fonte: Rádio Difusora).
"Um projeto em tramitação na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro que propõe a definição do funk como movimento cultural a ser assegurado pelo poder público ganhou repercussão. O projeto elevaria o funk a uma espécie de “cultura protegida”. A proposta levou a uma tensão entre os aficionados pelo ritmo e aqueles que afirmam que as músicas encorajam o crime organizado e estimulam a sexualidade precoce entre crianças e adolescentes.
O objetivo é que o funk deixe de ser tratado pela Secretaria de Segurança Pública, passando para as mãos da Secretaria de Cultura. Os defensores do projeto argumentam que o movimento é uma forma de expressar o cotidiano de comunidades carentes do Rio, reunindo mais de um milhão de jovens nos fins de semana.
A proposta estabelece que “compete ao poder público assegurar a esse movimento a realização de suas manifestações próprias, como festas, bailes, reuniões, sem quaisquer regras discriminatórias” e proíbe “qualquer tipo de discriminação ou preconceito, seja de natureza social, racial , cultural ou administrativa” contra o movimento funk.
O funk é objeto de outro projeto apresentado pelo deputado federal Chico Alencar (PSOL) na Câmara dos Deputados, em Brasília, em dezembro de 2008. Pela proposta, que também define o funk como forma de manifestação cultural popular, o poder público deverá garantir a proteção do movimento, assegurando a livre realização das festas e dos bailes para sua promoção.
O projeto define também que a discriminação e o preconceito contra o movimento funk e seus integrantes estarão sujeitos às penas previstas em lei. O texto tramita em caráter conclusivo e ainda será analisado pelas comissões de Educação e Cultura, e de Constituição e Justiça e de Cidadania".
(Artigo de Cidinha da Silva, postado no blogue em 07/07/08).
O som dá medo. E prazer. Afirma a autora, a jovem Janaína Medeiros, na capa do livro. Minha primeira impressão foi de que o título da obra, o mesmo deste pôste, fosse apelativo, coisa de jornalista em busca de atenção para a matéria. Qual nada! Eu, fã de funk que sou, da música, da parte eletrônica, principalmente, – aquilo é “som de preto, de favelado e quando toca ninguém fica parado” -, me surpreendi com o processo cruel e insano de criminalização do funk no Rio de Janeiro. Dá medo, coisa orquestrada por demônios. No funk gosto também das meninas, Tati Quebra-Barraco e Deize Tigrona, duas grandes líderes, cada uma com estilo próprio. Gosto de Cidinho & Doca, autores do Rap da Felicidade (Eu só quero é ser feliz/andar tranqüilamente na favela onde eu nasci...) e me intriga a trajetória do polêmico Mr. Catra, talvez o nível de escolaridade mais elevado do funk. Num mundo onde a maioria das pessoas abandonou a escola para trabalhar muito cedo, logo depois de completar as quatro ou cinco primeiras séries, Catra chegou à universidade e desprezou o curso de Direito para ser artista. Foi roqueiro, rapper, até chegar a funkeiro, o Mr. Catra do funk, com muito orgulho. Além disso, empresário e promotor de eventos, gerador de trabalho remunerado pra moçada, direta e indiretamente (vendedores de cachorro-quente, churrasquinho de gato, outras comidas e bebidas, etc). Ah, e canta samba, e faz participações em disco dos Racionais e dos Raimundos. O cara é um liquidificador em pessoa. Faz muitos filhos também, tem doze, com sete mulheres diferentes. Esse é o mundo real. Um mundo que reúne até dois milhões de jovens (pretos e favelados) em cerca de 700 bailes por final de semana na cidade do Rio de Janeiro. Jovens que têm goteira em casa, quando têm telhado, experimentam a ausência de todos os serviços básicos, coisa que a classe média não poderia imaginar o que seja, e que, quando chega o final de semana, não querem falar sobre isto, demonstrar consciência social e política para regozijo nosso. Querem mesmo é colocar a calça apertadinha, no caso das meninas, e a bermuda larga, no caso dos meninos, rebolar bastante (os meninos destrancaram os quadris depois de findos os bailes de briga), soltar a voz e falar de sexo. Fazer sexo também, que ninguém é de ferro. Depois do baile voltam para a vida real. Vai vendo, como diz o pessoal da quebrada. A intenção do livro de Janaína foi “relatar como o funk tem sido criativo e persistente para sobreviver e derrubar preconceitos, apesar da mídia e a sociedade tentarem demonizá-lo e tornar seu público invisível (jovens negros, pobres e favelados). Mesmo sendo ele hiper visível nas ruas, nos pontos de ônibus, nas escolas, nas filas de emprego, nos sinais de trânsito” (p.10). Conseguiu. Numa analogia certeira e fundamentada, Janaína mostra como o samba e o funk sofreram perseguição da polícia quando ganharam notoriedade. Mas também, quais eram (são) os protagonistas de ambos? Nos surpreende com a informação de que mais gente do samba, além do contemporâneo e criativo Ivo Meireles da Mangueira, teve um caso de amor com o funk. Também era admirador do ritmo, o mítico Delegado, mestre-sala maior da verde-e-rosa e do carnaval brasileiro. Ele gostava de funk e chegou a dançá-lo. Dizia que era tudo a mesma coisa, samba e funk. Lembrei-me de Mestre Pastinha que afirmava ser Mestre Bimba (construído como seu principal opositor na concepção filosófica e gestual da Capoeira) tão angoleiro quanto ele. O lendário sambista Candeia também não escondia sua paixão pelo funk, mesmo tendo feito afirmações ideológico-musicais pró-samba em oposição ao funk, em atendimento a pressões do mercado fonográfico. O livro me ajudou a entender também, mais três ou quatro coisas fundamentais: historiou o processo de nacionalização do funk e de distensão com o Hip Hop, principalmente o de São Paulo, a partir do momento em que este incorpora ao seu discurso reivindicações do Movimento Negro e o funk, a seu turno, exacerba letras marcadas pelo escracho, duplo sentido e irreverência. Aprendi que os “bondes” (grupos de funkeiras e funkeiros que se apresentam e competem nos bailes) foram iniciados pelas mulheres, por Deize Tigrona, na Cidade de Deus, e que esses bondes tiveram papel fundamental para promover um modelo de baile no qual a violência foi substituída pela criatividade e pela sensualidade. Teve também papel definitivo nessa passagem da guerra à paz, a criminalização e conseqüente prisão dos promotores dos "bailes de briga" (donos de equipes de som). Os “bailes de briga” (Lado A/Lado B) foram exaustivamente mostrados pelo Globo Repórter da TV Globo, mas sem discutir a responsabilidade pela promoção da praça de guerra que em poucos anos ceifou a vida de dezenas de jovens e causou danos a centenas de outras. Pude entender as principais linhas políticas do funk (esta é a minha leitura politizada da coisa, a autora não adota a expressão): o funk irreverente, com duplo sentido; o funk consciente, com letras sociais e o “rap de contexto”, popularizado no asfalto como “proibidão”. Depois do fim dos bailes de corredor ou de briga, por volta de 1998, diz-nos Janaína que o funk consciente voltou a chamar a atenção da mídia de maneira negativa. “Suas letras faziam relatos de violência e convivência com o tráfico na realidade. E as melodias, muitas vezes, reproduziam o som dos tiroteios – constantes na favela e ouvidos pelos vizinhos do asfalto. Paralelamente, um pequeno segmento de funkeiros passou a produzir funks clandestinos dentro das comunidades, cujas letras exaltam traficantes locais e ridicularizam a corporação policial. Conhecidos como 'raps de contexto', eles têm autoria sempre clandestina e só tocam dentro dos chamados bailes de comunidade. Não demorou até que a imprensa tomasse conhecimento desse filão e o apelidasse de ‘proibidão’. Em pouco tempo, a mídia e a opinião pública puseram o funk consciente e os proibidões no mesmo saco. Isso só contribuiu para reforçar o preconceito contra o funk e o distanciar cada vez mais do reconhecimento como movimento cultural” (pp. 69 e 70). Para se defender das acusações de apologia ao crime, Mr. Catra afrima que: “Ninguém está incitando ninguém. Ninguém vira bandido por causa do funk. O funk é uma crônica. Junto com muito suingue, muita pancada, muita dança, muito suor. O que acontece é que as pessoas ainda não se acostumaram a conviver com a realidade dos outros, tá ligado?”
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Beijo