Sobre a escolha de ir embora

No final do ano, uma morte nos assombrou, a de Neusa Santos Souza, autora do clássico “Tornar-se negro” (Graal, 1983). Li a obra, não conheci a autora. O livro é um marco no pensamento brasileiro sobre relações raciais e a psique, um estudo lacaniano. Quando o li, não me disse muita coisa, pois, diferente dos processos descritos no livro, eu nasci negra, desde que me lembro de mim, me percebo negra, não me tornei negra, não. Alguém, muito emocionado, provavelmente por conhecê-la e manter com ela uma relação afetuosa, escreveu: (...) “com muitas exclamações, perguntamos o que faz com que uma pessoa do tamanho de Neusa Santos Souza "em vez de continuar / tomasse melhor saída: / a de saltar, numa noite,/ fora da ponte e da vida?", parafraseando João Cabral de Melo Neto”. É um trecho do “Morte e vida severina”, que eu havia esquecido. A morte sempre traz consigo a perplexidade do fim da vida e, enfrentar a escolha de alguém querido, pela interrupção do fluxo da vida, nos deixa sem chão. Assim deve ter se sentido quem escreveu a mensagem, mas, com todo o respeito à dor sentida e à necessidade de reconhecer o quanto Neusa foi grande e importante para a compreensão e superação do racismo, para o Brasil e para o pensamento crítico que aqui se desenvolve, me perguntei se os “pequenos” teriam mais motivos para se suicidar do que os “grandes”. Talvez nestes, os motivos sejam ainda mais vivos e insuportáveis, porque, em tese, tudo o que os outros queriam, os “grandes” alcançaram: sucesso, reconhecimento, mais sucesso... mas, talvez, tudo isso não diminua o vazio, talvez até contribua para aumentá-lo, aquilo que Thiago de Mello escreveu em “Faz escuro, mas eu canto” – “não sei, nem jamais saberei o nome, do bicho que dorme, no escuro do açude sem fundo que sou”. Desculpem se cito errado, mas é de memória, de um assombro da adolescência, quando li o poema. O fato é que a estatura de uma pessoa não nos garante que ela seja feliz e que queira viver a vida que está vivendo. O bicho e o açude estão dentro dela, dentro de nós.

Comentários

Anônimo disse…
Concordo plenamente com o seu pensamento. Conheci a Neusa brevemente, e a admirava muito. Tratava-se de uma mulher muito inteligente, muito educada, muito gentil. Como um todo, era linda! Não consigo deixar de pensar no sofrimento sem fim que a acometeu, e como você colocou lindamente em seu texto, nada que vem de fora preenche o vazio que é inerente. É um buraco sem fundo mesmo...

O que surpreende é que a Neusa parecia ter recursos para lidar com o sofrimento, ou pelo menos, sabia que existiam recursos...

Afinal, ela trabalhava com saúde, o seu trabalho era promover vida, promover saúde...

Incrível... é uma dor imensa constatar que ela se foi, e não voltará mais... ao mesmo tempo, é algo curioso, intrigante e me confirma algo que eu já sabia há muito tempo ... tudo pode não ser nada ... porque no final das contas o que nós realmente precisamos não pode ser encontrado apenas fora da gente ...
Anônimo disse…
Conheci e privei da amizade da Neusa por quase 20 anos. Inteligente, culta, sensível, brilhante, elegante nos gestos, na forma de se conduzir na vida, na forma de ensinar. Grandes risadas, boca vermelha, roupas de cores fortes, uma mulher absolutamente interessante.
A perda é irreparável.A saudade, para sempre.
Colegas de profissão, intriga-me o fato de que os que ultimamente estavam mais com contato com ela, não tenham podido ver o tecido se esgarçando, os passos em direção ao abismo.
Devo à ela a paixão de psicanálise lacaniana. Devo à ela esse carinho, essa ternura e essa saudade definitiva...

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