Beleza negra, ou: ora-yê-yê-ô!



 por Lélia GonzalezMLG
.........  Nunca esquecerei o carnaval de (19)78, que passei em Salvador. Graças à recomendação do Macalé, um de seus fundadores, participei do desfile do Ilê. Foi de arrepiar e fazer o coração da gente bater disparado. Jovens negras lindas, lindíssimas, dançando ijexá, sem perucas ou cabelos “esticados”, sem bunda de fora ou máscaras de pinturas, pareciam a própria encarnação de Oxum, a deusa da beleza negra. Enquanto isso a música dizia: “Aquela moça / Que tá na praça / Tá esperando / É o bloco da raça / E quem é ele? / Eu vou dizer / É o bloco negro / Ele é o Ilê Aiyê /...

É importante ressaltar que as atividades dos blocos e afoxés não se restringem ao carnaval, mas se desenvolvem durante o ano inteiro. E é nisto que se encontra a sua força. Seus membros estão sempre juntos, discutindo, refletindo, criando coisas novas. E foi por aí que surgiu a idéia de instaurar a “Noite da Beleza Negra”[1], visando a marcar anualmente todo um processo de revalorização da mulher negra, tão massacrada e inferiorizada por um machismo racista, assim como por seus valores estéticos europocêntricos.

E são as jovens negras desses blocos e afoxés que organizam suas respectivas festas, convidando de preferência pessoas da comunidade negra que elas consideram credenciadas para escolher, dentre elas, a mais digna representante da beleza negra.

Não se trata de um concurso de beleza tipo “miss” isto ou aquilo, o que não passaria de uma simples reprodução da estética da ideologia do branqueamento. Afinal, pra ser “miss” de alguma coisa, a negra tem de ter “feições finas”, cabelo “bom” (“alisado” ou disfarçado por uma peruca) ou, então, fazer o gênero “erótico/exótico”. O que ocorre na escolha de uma “Negra Ilê”, por exemplo, não tem nada a ver com uma estética européia tão difundida e exaltada pelos meios de comunicação de massa (sobretudo por revistas tipo “pleibói” ou de “moda”, assim como pela televisão).  Na verdade, ignora-se, tranqüilamente, essas alienações colonizadas, complexadas, não só das classes “brancas” dominantes, como também dos “jabuticabas”[2] e/ou dos “negros recentes” (né, João Jorge[3]?). O que conta para ser uma “Negra Ilê” é a dignidade, a elegância, a articulação harmoniosa do trançado do cabelo com o traje, o dengo, a leveza, o jeito de olhar ou de sorrir, a graça do gesto na quebrada do ombro sensual, o modo doce e altaneiro de ser, etc. E se a gente atentar bem para o sentido de tudo isso, a gente saca uma coisa: a Noite da Beleza Negra é um ato de descolonização cultural.

Por isso mesmo, fiquei muito tempo sensibilizada quando minhas irmãs do Ilê Aiyê me convidaram para presidir a escolha da “Negra Ilê” de 1982, ocorrida no dia 6 de fevereiro. Infelizmente, as exigências da nossa luta fizeram com que eu permanecesse no Rio e não participasse, também, da escolha da beleza negra do Male Debalê, no dia 14. De qualquer modo, ficam aqui o nosso testemunho e a nossa solidariedade para com esse importantíssimo trabalho. E, para as escolhidas de (19)82, a nossa saudação, na saudação de Oxum: ORA-YÊ-YÊ-Ô!

Beleza negra, ou: ora-yê-yê-ô!
Lélia Gonzalez
in Jornal Mulherio ,Ano 2, número  6,  Março/Abril – 1982, p. 3

*Divulgado em 2013 pelo Memorial Lélia Gonzales


[1] A “Noite da Beleza Negra” surgiu, em Salvador, por iniciativa do Ilê Aiyê, em 1980.  Em 1982, passou a ser realizada, também, no Rio de Janeiro, por iniciativa do Bloco Afro Agbara Dudu, tendo Lélia Gonzalez como membro da primeira Comissão Julgadora.
[2] Jabuticabas.  Pessoas que são como a fruta jabuticaba – ou jaboticaba: pretas por fora e brancas por dentro; e ainda com um caroço difícil de engolir, dizia Lélia.
[3] João Jorge.  Referência a um dos fundadores do Bloco Olodum, possivelmente por conversas que a autora tenha tido com João Jorge.  Lélia participou da fundação do Olodum.

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