O texto de Lado a lado e a sublevação do senso comum sobre as assimetrias raciais no Brasil
Por Cidinha da Silva
O
capítulo de Lado a lado, veiculado no entardecer do primeiro sábado de março,
do ano da vitória de 2013, entrou para os anais da teledramaturgia brasileira.
Eram inacreditáveis, insondáveis, imprevisíveis, cenas como aquelas na Rede
Globo, onde a liberdade de expressão tem sido tão limitada.
Na
primeira cena antológica, Isabel (Camila Pitanga) amparada por Afonso (Milton
Gonçalves) conta a Elias (Cauê Campos) que a moça dos doces, sua avó,
Constância (Patrícia Pillar) é a bruxa da história. Quando indagada por Elias
sobre por que Constância não gostava dela, Isabel diz que era pobre. Elias, o
menino esperto, tem resposta para tudo e diz que não são mais pobres e que
Constância pode ter mudado, ter-se arrependido, faz tanto tempo que ela o
roubou da mãe. O diálogo é mais rico e dramático do que esta síntese. A memória
recente apagou detalhes, haja vista que a analista foi para o espaço e me
tornei simples telespectadora, sem caneta e caderno à mão.
A cena
descrita foi muito feliz ao captar a ignomínia do racismo, já anunciada por
Isabel em capítulos anteriores. Como é que a mãe explica a uma criança que ela
vale menos porque é negra, contrariando todo o empenho dela, a mãe, para tratá-lo
como menino especial. Se bem observarmos, Elias e Melissa (Eliz David)
vestem-se de maneira diferente de todas as outras crianças do morro, comem
outra comida em suas respectivas casas, têm outros hábitos e acessos. Melissa é
branca e rica, Elias é como as crianças do morro, mesmo tendo se tornado de
classe média.
O novo
é a explicitação de que não interessa ter recursos econômicos e simbólicos
frente ao racismo, você continua sendo negro e por isso, considerado inferior,
manipulável. Elias é aquele que deveria crescer escondido para não envergonhar
a família branca da avó. Aquele que não foi assassinado na hora do parto porque
num rudimento de humanidade, a vilã resolve trocar a criança viva por outra
morta, comprada de uma mãe infeliz e miserável qualquer. Isabel, Afonso, tia
Jurema (Zezeh Barbosa), Zé Maria (Lázaro Ramos) e o restante do núcleo negro,
incluindo as comparsas de Constância, parecem ser os únicos a compreender a
monstruosidade da baronesa em toda sua extensão. Ela pagou alguém para comprar
uma criança morta, usada para substituir outra, nascida viva, caso alguém tenha
esquecido.
A
segunda cena abre com Isabel dizendo ao pai: “negro, porque você é negro! Eu
não consegui dizer ao meu filho que a avó o roubou de mim porque ele é negro.”
É um diálogo de dois negros em carne-viva, dilacerados pelo racismo o que se
ouve a seguir, às sete da noite, como uma lua linda dando o ar da graça pela
janela. De quebra, o pai conservador parece compreender que o ofício da filha,
de empresária e dona de um teatro, cujas atividades acontecem também à noite, é
um trabalho digno.
Noutra
cena do capítulo magistral, Laura (Marjorie Estiano) aceita a proposta de Edgar
(Thiago Fragoso) de que ela seja a testemunha responsável por reabrir o
processo de rapto de Elias, considerando que ela, mulher branca, filha da vilã,
ouviu a megera confessar a Isabel e Afonso (dois negros que nada valem e
diretamente interessados no litígio) que, realmente, raptara o recém-nascido
Elias. Bingo! O mocinho advogado e a mocinha filha da vilã entenderam o papel
estratégico que tinham a desempenhar naquela situação. Edgar honra alcunha de
ser um dos melhores advogados do Rio de Janeiro de então e Laura agirá de
acordo com sua consciência ética e sua noção imparcial de justiça.
Na
última cena do dia memorável, Laura trava luta corporal com a mãe para entregar
uma matéria sobre corrupção no Judiciário para o jornal de Guerra (Emílio de
Mello). Reportagem assinada por ela, Laura Vieira, não por Paulo Lima, seu
fantasma e, ainda melhor, incriminando o promotor Coimbra, responsável pelo
arquivamento do processo de Constância, mediante polpudo suborno.
Arre
Frederico, foi um capítulo de tirar o fôlego. Que os orixás mantenham Ali Kamel
em estado hibernal. Caso esteja acordado, pode apenas ser uma no cravo, outra
na ferradura. Lógica global, enquanto pipoca a chamada para a próxima novela.
Que
Lado a lado crie raízes fortes, floresça e frutifique, pelo menos entre seus seguidores
e seguidoras que a tem levado para o debate sobre relações raciais nas escolas
públicas, em universidades, em trabalhos de conclusão de curso, artigos,
monografias e dissertações sobre mídia e representação social.
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