Colóquio das Estátuas

De Carlos Drummond Andrade 

"Sobre o vale profundo, onde flui o Rio Maranhão, sobre os campos de congonha, sobre a fita da estrada de ferro, na paz das minas exauridas, conversam entre si os profetas. 
Aí onde os pôs a mão genial de Antônio Francisco, em perfeita comunhão com o adro, o santuário, a paisagem toda – magníficos, terríveis, graves e eternos –, eles falam de
 coisas do mundo que, na linguagem das Escrituras, se vão transformando em símbolo.
As barbas barrocas de uns, panejadas pelo vento que corre as gerais, lembram serpentes vingativas, a se enovelarem; no rosto glabro de outros, a sabedoria ganha nova majestade; e os doze, em assembléia meditativa, robustos, não obstante a fragilidade do saponito em que se moldaram e que os devotos vão cobiço-samente lanhando – os doze consideram o estado dos negócios do homem, a turbação crescente das almas, e reprovam, e advertem.
– Uma brasa foi colada a meus lábios por um serafim – diz Isaías, ao pé da grade. E Jeremias, cavado de angústias, desola-se:
– Pois eu choro a derrota da Judéia, e a ruína de Jerusalém...
Esse choro, através dos séculos, vem escorrer nos dias de hoje, e não cessa nem mesmo quando Israel volta a reunir seus mem-bros esparsos, pois só outra Jerusalém, a celeste, não se corrompe nem se arruína.
*
Na sua intemporalidade, são sempre atuais os profetas. Em qualquer tempo, em qualquer situação da história, há que recolher-lhes a lição:
– Eu explico à Judéia o mal que trarão à terra a lagarta, o gafanhoto, o bruco e a alforra – é Joel quem fala. Ao passo que Habacuque, braço esquerdo levantado, investe contra os tiranos e os dissolutos:
– A ti, Babilônia, te acuso, e a ti, ó tirano caldeu ...
Numa visão apocalíptica, Ezequiel descreve "os quatro animais no meio das chamas e as horríveis rodas, e o trono etéreo". Oséias dá uma lição de doçura, mandando que se receba a mulher adúl-tera, e dela se hajam novos filhos. Mas Nahum, o pessimista, não crê na reconversão de valores caducos:
– Toda a Assíria deve ser destruída – digo eu.
Contudo, há esperança, mesmo para os que forem atirados à jaula dos leões – conta-nos Daniel (e em numerosas partes do mundo eles continuam a ser atirados; apenas os leões se disfar-çam); esperança mesmo para os que, por três noites, habitarem o ventre de uma baleia – é a experiência de Jonas, a caminho de Nínive.
*
Assim confabulam, os profetas, numa reunião fantástica, batida pelos ares de Minas. Onde mais poderíamos conceber reunião igual, senão em terra mineira, que é o paradoxo mesmo, tão mis-tica que transforma em alfaias e púlpitos e genuflexórios a febre grosseira do diamante, do ouro e das pedras de cor? No seio de uma gente que está ilhada entre cones de hematita, e contudo mantém com o Universo uma larga e filosófica intercomunicação, preocupando-se, como nenhuma outra, com as dores do mundo, no desejo de interpretá-las e leni-las? Um povo que é pastoril e sábio, amante das virtudes simples, da misericórdia, da liberdade – um povo sempre contra os tiranos, e levando o sentimento do bom e do justo a uma espécie de loucura organizada, explosiva e contagiosa, como o revelam suas revoluções liberais?
São mineiros esse profetas. Mineiros na patética e concentrada postura em que os armou o mineiro Aleijadinho; mineiros na visão ampla da terra, seus males, guerras, crimes, tristezas e anelos; mineiros no julgar friamente e no curar com bálsamo; no pessimismo; na iluminação íntima; sim, mineiros de há cento e cinqüenta anos e de agora, taciturnos, crepusculares, messiânicos e melancólicos."

Do livro Passeios na ilha

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