O jeito sulista de fazer Jazz (Strange Fruit)


Um conto de Mumu Silva



Não lembro de onde vim, mas cheguei à cidade pouco depois do anoitecer. A viagem de trem foi desgastante, viajar pelo sul norte-americano sempre é, especialmente para nós, homens negros. A cidade era pequena, tinha aquele ar aconchegante do campo. A meia quadra da estação de trem havia uma igreja muito grande com a pintura toda desgastada.  Na verdade a cidade, cujo nome, infelizmente não me recordo, era muito comum. Ela se parecia com qualquer outra cidade do sul dos Estados Unidos década de 30.

Ao lado da igreja havia lojas feitas de madeira, todas assimetricamente enfileiradas. Do meu lado esquerdo havia a via férrea, por onde cheguei, e, do lado direito alguns casebres, uns maiores, outros menores. Definitivamente era uma vista comum.

Cheguei ao hotel e as coisas aconteciam de acordo com o esperado, não queriam me hospedar. Preferia quando haviam as placas “White only”*, era muito mais sincero, mesmo odiando do fundo de minha alma as leis de “Jim Crow”*.

Depois de muito penar, consegui algo raro, aluguei um quarto bem ao lado do hotel. Era pequeno, não sei ao certo se era um quarto de empregados. Era pouco provável, pois naquele tempo os hotéis nem contratavam negros. Não entendi como consegui aquela hospedagem, mas estava cansado demais e não queria pensar naquilo tudo, por mais que me forçassem a isso a todo momento: briga para conseguir almoçar, briga por estadia e até pelo uso do banheiro. Bem, o que dizer dos sulistas, não?!

Apesar de minúsculo, o quarto possuía alguns luxos e um deles era um lampião. Com ele pude começar a rever meus cadernos e fazer algumas anotações. Quando me dei conta já estava totalmente desperto. Meu sono e cansaço haviam passado. Comecei então a ouvir muitas vozes e gritos que vinham da rua. Assustado apaguei o lampião. Havia passado um pouco da meia noite, horário incomum para todo aquele barulho deste lado da cidade. Recordava-me que os clubes e cabarets ficavam a algumas quadras dali, mesmo assim, não faziam tamanha algazarra como aquela que estava ouvindo.

Abri uma pequena fresta na persiana para poder entender o que estava acontecendo. Deduzi  de forma leviana que um crime havia sido cometido. Não pude me conter por muito tempo, vesti meu casaco e meu chapéu. Então  parti para ver de perto o que acontecia nas ruas daquela pequena cidade.

Segui o som da confusão e ele me levou de volta a estação de trem. Fiquei escondido atrás de uma árvore. Havia em torno de 25 pessoas aglomeradas ali. A maioria era composta por homens bem apessoados, ou, melhor dizendo, homens com aquele típico perfil sulista americano: Loiro, alto, esbelto barba e/ou bigode por fazer, olhos esverdeados ou acinzentados. Olhos sempre brilhantes e cruéis.

Alguns deles estavam calados, postados firmemente em pé. Austeros. Figuras assustadoras posso dizer. Já o restante era o oposto. Não se continham e batiam suas botas com esporas no chão fazendo a maior algazarra enquanto levantavam suas armas de fogo e facões, praguejando sem parar. Era impossível entender o que falavam.

A situação era caótica. Senti uma voz do além sussurrando em meu ouvido para que eu não ficasse ali. Totalmente perplexo não tinha certeza sobre o que fazer. A única certeza que tinha, mesmo sem saber o que estava acontecendo, é que aquele dia mudaria a minha vida para sempre. Estático e impaciente aguardei até os primeiros e fracos raios de sol que chegaram iluminando aquelas pessoas arrepiantes, juntamente com todos aqueles casebres.

Já não havia mais baderna. Rapidamente os baderneiros calaram. A organização e o silêncio eram tão profundos que conseguia ser mais assustador do que tudo que já tinha acompanhado até então. Aqueles homens se comunicavam e se entendiam pelo olhar. Estavam em comunhão, de corpo e alma.

Com o nascer do sol muitas pessoas iam chegando e se encostando. Haviam muitas mulheres e crianças. Em um círculo mais ao fundo havia a aglomeração dos negros, que, por medo, ou por simples impedimento social, não ousavam chegar muito perto daquela alva multidão. Muitos carregavam marmitas e sacolas, com certeza estavam indo trabalhar. Diferentemente dos outros, tinham um olhar apreensivo. Com certeza eles sabiam o que se passava. Alguns seguravam seus símbolos religiosos e faziam orações.

Por volta de 7 horas da manhã, pude ver que ao longe trotavam em nossa direção alguns homens da segurança pública da cidade. Entre eles haviam dois cavaleiros imponentes que se destacavam. Bonitos e alinhados seus cavalos trotavam de forma imperativa pela estrada de terra.  Entre um cavalo e outro, havia um jovem negro amarrado. Estava quase sendo arrastado. Ele corria da forma que podia entre os imponentes cavaleiros. Suas mãos estavam atadas a uma grande corda que também prendia sua cintura. Tudo isso estava firmemente amarrado à cela de um dos cavalos.

Mesmo os homens que austeros permaneceram durante toda a noite, passaram a gritar e rosnar sons horripilantes de euforia com a chegada da cavalaria. Rapidamente as pessoas abriram um clarão na multidão e alguém, prontamente, passou uma corda no pescoço do jovem negro. A outra ponta da corda já estava sendo posicionada em um apoio de madeira, formando uma forca. Neste momento alguém no meio da multidão gritou: "Queimem ele! A forca é digna demais para um criolo!”

A tensão era enorme. Como uma corrente elétrica ela foi sendo conduzida e passava para cada corpo presente. Os corpos tremiam em ecstasy.   Você já presenciou a transformação de seres humanos em feras selvagens? Creio que poucas coisas neste mundo são tão terríveis e assustadoras como isso.

Rapidamente buscaram e cravaram no chão um mourão da estrada de ferro. Trocaram as cordas que amarravam aquele jovem negro por correntes e em poucos instantes ele já estava totalmente preso àquele pedaço de madeira.

Mesmo em estado de choque tentei olha-lo nos olhos, talvez em sinal de apoio, mas o que eu via era a carcaça, não mais um homem. Nele só havia suas formas de ser humano, pois em sua face e em sou corpo estavam cravadas a ferro e chicote todas as marcas da mais pura degradação. Seus olhos eram opacos e olhavam para o vazio. Conclui então que em sua cabeça já existia total ausência de pensamentos. Ele havia se dado conta de seu fatídico destino e em total estado de choque mal conseguia reagir ou tremer.

Era somente mais um negro a mercê daquele pelotão de olhos claros. Era mais um jovem negro prestes a conhecer a forma sulista de se fazer jazz.

Organizadamente trouxeram diversos pedaços pequenos de madeira e óleo. Colocaram cada pedaço de lenha perfeitamente entre o mourão  e os pés do jovem negro. Depois de tudo arrumado, não sei ao certo de onde, alguém chegou com a tocha acesa. Ela clareava ainda mais aquela ensolarada manhã.

Em poucos instantes as chamas que nasceram pequenas e tímidas aos pés daquele negro desafortunado se transformaram em lindas labaredas avermelhadas que tomaram conta de todo seu corpo.

Assustado o jovem soltou um gemido fino, longo e profundo. De repente ele passou a se contorcer entre as correntes tentando escapar. Tudo em vão. Começou a gritar desesperadamente um grito que vinha do fundo de sua alma. Um grito de dor. Um grito de morte. Este grito era tão horripilante que jamais sairá da minha cabeça, tenho certeza disso!

Enquanto as chamas queimavam suas carnes, seus urros de desespero e dor que antes podiam ser ouvido a quadras dali, passaram a ficar cada vez mais graves e abafados por conta das chamas, cada vez mais altas e fortes. Seus olhos, antes opacos e estáticos, agora giravam freneticamente sem direção certa dentro de suas órbitas. Eles buscavam em cada pálido rosto a sua volta um socorro, que, obviamente, nunca seria atendido.

Na multidão alguns gritavam e pulavam de alegria. Outros mostravam claro arrependimento por ter participado de toda aquela barbárie. Haviam alguns poucos que se viravam e fechavam os olhos para não ver aquela cena. Ficava evidente que seu próprio ódio lhes causava enjoo.

Eu estava paralisado. Não conseguia mover um músculo sequer, parecia que havia sido pregado naquela arvore, assim como cristo na cruz. A curiosidade, ansiedade e bravura da noite anterior se transformaram em uma espécie de arrependimento e culpa.

Ainda não consigo entender como alguém pode atear fogo e queimar um semelhante com tanta naturalidade. Também não entendo como ninguém foi capaz de ao menos tentar impedir aquilo tudo. Inclusive eu.

Antes mesmo que eu continuasse com meus devaneios, ou, me desse conta, tudo estava terminado.

De toda aquela loucura só havia sobrado o mastro de madeira inteiramente carbonizado, algumas cinzas que alimentavam um fogo já morto, ossos enegrecidos pelas labaredas e alguns fragmentos de carne, que chamuscados, escorriam presos naquelas correntes enegrecidas. O cheiro de carne queimada - carne humana - invadia minhas narinas. Era tão enjoativo que nem sei descrever como me senti.

Na verdade me sentia deveras humilhado! Desejei muito trocar de lugar com aquele jovem rapaz naquela manhã. Como alguém tão jovem podia ser dono de um destino tão cruel?

A vergonha percorria cada poro e cada pelo do meu corpo. Como era triste fazer parte de uma raça que podia ser tratada daquela maneira. Eu mesmo podia ser queimado vivo a qualquer instante. Talvez até o fosse na tentativa de reivindicar meus direitos por estadia, comida ou um copo d'agua no restaurante errado. Talvez fosse melhor ser um cão vira-lata ao invés de um jovem negro em terras como essa.

Voltei para meu quarto tão chocado que mal me lembrava de onde vim ou para onde iria. A única certeza que tinha é que deixaria aquela cidade o quanto antes.

Enquanto coisas assim se repetem diariamente, a vida continua no seu ritmo de improviso constante.

A poucas quadras dali em um cabaret qualquer os shows da noite anterior ainda não haviam acabado. Billie Holiday cantava"Strange Fruit" com a banda de Artie Shaw numa esquina, enquanto Chick Webb swingava sem parar, fazendo aqueles traseiros brancos rebolarem no clube concorrente.

Algum cretino que acabara de sentar em uma mesa grita para Billie Holiday: "Ei criola, canta pra mim aquela música sobre os corpos ardendo de tesão! Da uma olhada em como eu estou cheio de tesão por você, boneca!” - Lady Day fechou seu semblante, virou as costas e deixou o palco elegantemente engolindo a seco a ofensa, coisa rara de acontecer. “Just feel the blues”, este era o jeito do negro fazer jazz.

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