Flores para os autores de Lado a lado
Por Cidinha da Silva
Lembro-me vagamente de ter assistido a três novelas das seis, duas
quando criança e outra na adolescência. Devo até ter visto uma ou outra mais
tarde, mas não me lembro. A primeira tinha um escritor, poeta, talvez tenha
sido Meu pé de laranja lima, talvez não. Depois foi Escrava Isaura, um épico.
Por fim, já na adolescência, uma novela que eu assistia o começo e o fim para
ouvir a trilha sonora, Dori Caymmi cantava Desafio: éramos nós e os cavalos /
feitos do mesmo feitio / vindos de todos os
lados / e sobre eles sangrentos / seus cavaleiros sombrios. Ou seria Danilo?
Naquele tempo eu não podia imaginar que um dia conviveria com a
encantadora Léa Garcia e hoje estou de volta a uma novela das seis, Lado a
lado, dos autores renovadores, mais do
que estreantes, Cláudia Lage e João Ximenes Braga. Novela boa. Texto bom. Atrizes
e atores fantásticos! Sem esquecer as belas fotografia e trilha sonora. Quando
Camila e Lázaro afirmaram que essa obra revolucionaria o lugar do negro na
teledramaturgia brasileira, não exageraram. Eu apostei na indicação dos dois e
estou maravilhada.
A cena de deflagração da Revolta da Chibata foi uma das mais bonitas e
de maior intensidade dramática vista por meus olhos na TV brasileira. Fiquei completamente
tomada pela atuação portentosa de Lázaro Ramos (Zé Maria), de César Mello
(Chico) e, principalmente, de Jhe Oliveira (Inácio), os marujos líderes da
revolta no convés do navio. É tão bom ver um grande ator desabrochar, alguém
que pega um papel pequeno e o transforma em monstro na interpretação. Lázaro brilha
porque bons atores o circundam e sustentam, dialogam com sua performance. Parecia
volta triunfal de Pelé ao campo e todo mundo batendo um bolão para
acompanhá-lo. E depois, no morro, para arrematar, assim que a notícia da sublevação
chega e Jurema (Zezéh Barbosa) tem a premonição, a certeza de que Zé Maria estaria
à frente daquilo, as crianças passam a representá-lo nas brincadeiras, querem
ser como ele. Sim, ícones negros factíveis, são possíveis para referenciar as
crianças negras da novela e do Brasil.
E antes que acusem Lázaro Ramos de querer roubar a cena de João
Cândido, notemos que Zé Maria não decidiu pelo bombardeio à cidade, não só
pelos princípios de preservação da vida, mas porque o comando da operação
estava no Minas Gerais, onde provavelmente Cândido pensava a estratégia do
combate e, de lá, deveriam vir as ordens.
Boa parte dos personagens brancos debate o tema a partir da imprensa
livre e combativa praticada pelo idealista Guerra (Emílio de Mello). Olha só, o
mundo dos pretos não acontece isolado do mundo dos brancos na situação
ficcional.
Isabel (Camila Pitanga), a libertária e vanguardista, é tratada como
“perdida e desavergonhada” pelo pai conservador. Laura (Marjorie Estiano), a
personagem branca à frente do próprio tempo, companheira de Isabel na quebra de
paradigmas, precisa esconder a condição de divorciada (eu nem sabia que existia
divórcio naquela época) e o faz, protegida pela cumplicidade do homem amado e
abandonado. Nuances de sua situação são apresentadas, sem maniqueísmos. Há
artistas generosas e abertas como Diva Celeste (Maria Padilha), ou seja,
diversos modelos interessantes e significativos de mulheres.
A cena em que Afonso (Milton Gonçalves) e Jurema são furtados e
agredidos na rua e ninguém age, sequer para ajudá-los a levantar do chão, é de
precisão e delicadeza muito grandes. Trata-se de dois pretos, furtados por
outros pretos, logo, confusão de pretos e eles mesmos que a resolvam. A naturalidade
do descaso dos transeuntes pelo ocorrido mostra, exatamente, o lugar dos pretos
naquela sociedade. E a interpretação de Milton e Zezéh é magistral, eles se
fecham neles mesmos, não têm ninguém para contar no centro do Rio, sabem que
estão por sua própria conta e assim se comportam.
A polícia não sobe o morro, não protege quem mora lá. Jurema e Afonso
nem cogitam dar queixa ao delegado. A Light não sobe o morro para levar a
eletricidade. E nós não nos enganamos com as UPPs. Nestes tempos de
fundamentalismo religioso e igrejas eletrônicas, Oxalá é evocado pela boca de
vários personagens e isso nos faz tanto bem, não só por marcar um lugar de
fala, mas também para nos trazer paz.
E não haverá anistia aos marujos revoltosos, a História nos conta. E o
coração sofre sem saber se Zé Maria será mandado para a Ilha das Cobras para
morrer nos porões da cadeia, cheios de cal. Só João Cândido, o imortal, sobreviverá
na História, resta saber na novela. Zé Maria é o nosso mocinho, não pode morrer.
Ele precisa ser feliz ao lado de Isabel.
Que belo papel estão cumprindo os autores dessa novela! Que Nkossi
lhes dê água boa e sombra pelo caminho. Ngunzo!
Comentários