Subúrbia e o novo!
Por Cidinha da Silva
Começou Subúrbia! E eu que ansiava tanto pela série só consegui assistir o primeiro capítulo a partir da cena em que Conceição sai do hospital com o pé engessado. É que a vida me chamou para algo mais interessante do que a TV e mesmo tendo compromisso comigo mesma, precisei adiar a função telespectadora de mini-série.
Uma coisa boa está acontecendo, várias pessoas do campo das artes negras têm se manifestado quanto ao primeiro capítulo do seriado, entretanto, pouco (ou nada) reconheço da minha mirada no material que tenho lido. São tantos os problemas apontados e eu não os vi. Estarão meus sentidos embotados?
Procurei assistir o capítulo inteiro pela Internet, mas só consegui uma cena nova, o momento da fuga de Conceição da FEBEM e logo a seguir o atropelamento pela benfeitora (não se trata de algo novo ou velho, a benfeitora ainda é constante na vida de muita gente preta), portanto, não vi a cena da carvoaria, a chegada dela ao Rio e devo ter perdido outras coisas também.
Em dado momento eu escrevia sobre Gabriela e gostaria de convidar meus leitores a assistirem Subúrbia, no parágrafo final do texto. Perguntei a um ator conhecido sobre o pessoal nosso envolvido na trama, pois queria informação segura e completa. Recebi pronta e gentil resposta, mas nenhuma menção a Paulo Lins, como co-roteirista, apenas nomes de atores e atrizes. Imaginem a bola que eu, uma escritora, comeria, se não menciono a presença e o trabalho do grande Paulo Lins? Minha Nossa Senhora, como o povo diz na terra minha e de Érika Januza. Nem eu me perdoaria.
O esquecimento de Paulo Lins, sujeito fundamental da trama, me lembra os comentários sobre Subúrbia que tenho acessado, parciais e um tanto egocentrados. É certo que tenhamos diferentes pontos de vista, miradas diversas, a partir de pontos determinados, mas há que buscar a abrangência, mesmo que seja apenas no aprofundamento do aspecto escolhido para análise. Não basta afirmar de maneira peremptória que os atores e atrizes negros de Subúrbia são maravilhosos! Esse grupo de profissionais, fantástico, sim, merece que nos debrucemos sobre a atuação de cada um deles. É o mínimo necessário.
Até o momento, o texto de Subúrbia é delicado, preciso, poético, historicamente localizado e pleno de significado nas entrelinhas. Um texto à altura de Paulo Lins, um dos maiores escritores do Brasil contemporâneo. Cidade de Deus, ao lado de Viva o povo Brasileiro e Um defeito de cor, compõe, a meu juízo, a tríade magistral do romance brasileiro de 1970 para cá. Um autor dessa envergadura não merece ser reduzido ao lugar de insider, daquele que estaria a serviço dos brancos, da Globo e do capitalismo oferecendo o frescor das tintas pretas para repaginar uma velha história. Pelo menos não merece se não houver uma análise consubstanciada do texto que justifique a conclusão. Permito-me a redundância e afirmo, é um autor merecedor de crédito.
Estou adorando o texto, os diálogos e a performance do elenco. Confesso a vocês que demorei para reconhecer a Dani Ornellas. Eu a tinha visto em ação uma vez, em Filhas do Vento. Acho que ela perdeu o ar de menina e não assisti outros trabalhos para ver a mulher florescer. Mas, me digam aí, vocês que entendem muito de teledramaturgia, não é uma coisa muito boa a atriz modificar-se de tal forma quando encarna uma personagem, que a gente fica em dúvida se a conhece ou não? Lembrei-me de um comentário feito por um cineasta. Ele contava que Dani Ornellas era acusada de ser bonita demais para uma negra brasileira, parecia atriz estadunidense e isso deve tê-la impedido de conseguir alguns trabalhos. E aí está ela, subvertendo essas expectativas racistas e hipócritas, encenando uma mulher negra evangélica, uma fundamentalista do morro, mas com princípios. Ah... que bom, Subúrbia nos permite ver essa grande atriz na telinha. E bela, esplendorosa beleza, que ser bonita nessa terra só é defeito, quando se trata de limitar a ascensão profissional de uma preta talentosa.
Louca eu estava para assistir a atuação de Haroldo Costa, só o conheço como escritor e personagem antológico do samba. Vi, mas não o suficiente para emitir opinião. Quero muito ver a cena em que ele olhará as gaiolas de passarinho, sentado no quintal, como a foto imortalizada de Pixinguinha, com o saxofone no colo, no jardim da própria casa. Isso, além de configurar imagem inter-textual, é a tal cultura negra, bem representada pela arte.
Não vi Haroldo Costa, ainda, mas vi Cridemar Aquino, impagável como Moacir, o filho mais velho do patriarca suburbano. Homem casado, malandro na medida, inclusive nos quilinhos a mais. Paquerador manso e safado, daquele tipo “estou aqui, se a gata quiser, não nego fogo”. De leve, no sapatinho, respeitador e dado, oferecido discreto, daqueles que colam o corpo no corpo da menina e deixam o corpo falar. Ele não explicita o desejo como os adolescentes doidos para pegar a moça no laço. De acordo com os rudimentos de dramaturgia conhecidos, isso se chama construção de personagem. Cridemar constrói Moacir com solidez e verossimilhança. Ah... que bom Subúrbia ter oferecido a Cridemar a possibilidade de mostrar na TV o grande ator que é, velho conhecido nosso da Companhia dos Comuns.
Às vezes, um ator ou atriz demora mais para chegar ao papel, tive essa sensação com Rosa Marya Colin, a matriarca suburbana. Mas uma hora ela chega e vai cantar, precisa cantar, o Brasil vai parar para ouvi-la e, infelizmente, muita gente achará que nasceu, no instante do canto, uma cantora madura. Zezé Barbosa e Sheron Menezes não chegaram de cara em Lado a lado, mas agora já encontraram o tom de Berenice e Jurema e estão muito bem, melhores, a cada capítulo da novela das seis.
O texto é muito bom e Érika Janusa é mesmo atriz revelação. A Conceição criança é uma ótima atriz também, que tenha o tratamento dado às demais boas atrizes mirins da Globo. Aquela cena do caminhão de leite que chega na FEBEM todo dia, acompanhada por Conceição, estudada, cronometrados no relógio mental os gestos do motorista, é sua única possibilidade de fuga, é de poesia ímpar.
O leite é ensacado, como a gente só consegue ver hoje em super-mercado chinfrim de subúrbio ou em super mercado de rico, nas seções quase naturebas, leites tipo B e tipo A, não o velho e conhecido C. Hoje predomina o leite de caixinha, muitas marcas com componentes do formol, a título de conservante. Esses detalhes constroem uma ambiência verossímil e as tramas negras são merecedoras desse cuidado estético.
A cabeça da Conceição-menina desandou as contas da passagem do caminhão de leite, por isso, ela sabia que passou muitos dias presa. O eu lírico da menina (porque isso é poesia, se vocês não perceberam) precisava de um recurso qualquer que a ajudasse a contar o tempo necessário para maturar a fuga. O texto, as entrelinhas e o olhar dela, o risco de perder a vida grudada debaixo do caminhão para não morrer em vida, me deram esse entendimento. Simplesmente porque a arte é colírio para meus olhos viciados e cansados do mesmo, quando vejo o novo, sei enxergá-lo, mesmo que não seja em Todo dia é dia de Maria.
Aos navegantes, confirmo que é em Minas Gerais a localização da carvoaria. Só no dialeto mineirês as pessoas falam uma “muntuêra de dia”, para significar muitos dias, dias de perder a conta ou “dimais da conta” para não perder o tom do dialeto, nem a metáfora, nem a ideia de diáspora, que carece de compreensão, até entre nós.
A corporeidade negra será um tema forte em Subúrbia e isso é bem velho, quando se trata das abordagens feitas à gente. Não tenho competências substanciais para analisar o tema, mas sei do seguinte. Há alguns anos trabalhava num projeto de ação afirmativa com jovens negros que acontecia em São Paulo e no Rio de Janeiro, simultaneamente. Houve uma atividade de integração no Rio e o local escolhido foi a quadra de esportes do Complexo do Alemão, onde morava grande parte dos integrantes do projeto. Morava lá também a assistente de coordenação do módulo-Rio, uma mulher negra, jovem, casada, mãe de duas crianças e formada em Pedagogia. Churrascão no sábado à tarde e a moça chega hiper rebolativa, trajando um micro-short (relativamente solto no corpo, acho que era o código de diferença entre casadas e solteiras), salto plataforma de 10cm, blusa de alcinha, branca e transparente. Quando ela chegou ao portão da quadra, creio que fui a primeira a vê-la e me levantei para cumprimentá-la, não tanto por simpatia, mas porque eu estava morrendo de medo e queria saber se não haveria mesmo tiroteio e se houvesse, para onde deveríamos correr. A moça nem me viu. Do alto dos óculos escuros enormes percebeu que todo o grupo estava vestido de projeto, mesmo no churrasco na quadra do Alemão. A moça deu meia volta, foi em casa, vestiu uma bermuda acima do joelho, uma regata com borboletas e flores, sandália rasteira e voltou uniformizada para socializar-se num projeto educativo em moldes paulistanos.
Esse episódio me ensinou muito sobre a corporeidade negra, real, vivida no cotidiano do Rio de Janeiro, parte singular dessa imensa diáspora negra, e confio que Paulo Lins a conheça muito melhor do que eu e vá retratá-la com dignidade. Foi o que vi até o momento.
O funk ingênuo do final dos anos 80, década de 90, de Claudinho e Bochecha, Pepê e Nenem, me transporta para o funk de hoje que os meninos faziam no bondinho de Santa Tereza quando iam para o Dois Irmãos ou saiam do colégio público no Largo das Neves. O mesmo funk brincalhão do decantado 5 Vezes Favela. Lembram da cena em que um dos garotos perde uma prova de Matemática ou é mal sucedido na prova, algo assim? Isso imediatamente vira letra de funk, como parte do código de comunicação entre a moçada. Os proibidões também são uma forma de comunicação, a diferença é que são usados como trilha sonora do tráfico, do sexo e da guerra.
Não entendi qual é o problema da cena de estupro, para além do estupro, em si, obviamente. Aguardo o próximo capítulo torcendo para que tenha sido mesmo uma tentativa, que o estupro não seja consumado. Fiquei procurando um instrumento pérfuro-cortante no entorno de Conceição para ajudá-la em sua defesa. Tomara que haja um e que ela tenha condição de reagir. É novo que todos nós chamemos o ocorrido de estupro, com todas as letras. Estupro dentro de casa, patrão estuprando a empregada.
Não consegui ver o mais do mesmo denunciado. Ao contrário, a cena não foi construída como algo normal, corriqueiro, sim, mas normal, não. É corriqueiro porque é acontecimento freqüente para as trabalhadoras domésticas, dentro do local de trabalho. Era comum naqueles dias, nos dias antes daqueles e continua sendo hoje. Conceição, ao que parece, contará com uma rede de solidariedade negra, uma família que vai acolhê-la e não vai questioná-la. Isso é velho na nossa vivência, mas novo na TV brasileira.
A música de Roberto Carlos é o problema? Por quê? Vi coerência na escolha. Desde criança Conceição trabalha ouvindo Roberto. Ela estava trabalhando e o macho branco indômito tenta forçá-la ao sexo. O cantor faz parte do cotidiano dela, da rotina de todo dia e, certamente, a fantasia do tarado é estuprá-la na circunspecção de sua vidinha, a cozinha, com o rádio e a música habituais. Estamos falando de composição de cena, certo?
Outra coisa, os críticos não pensaram que a música poderia ser uma alegoria da cotidianidade do estupro? Meninas e mulheres são estupradas durante o dia, quando saem da escola, quando vão comprar pão, quando deixam as crianças na creche, quando estão sozinhas em casa, até dentro do ônibus quase vazio, não só de madrugada, quando saem do baile funk. Se fosse uma música da trilha de Hitchcok acharíamos exagerado. Qual é a trilha sonora adequada a um estupro na teledramaturgia? Existe uma?
Alguém mais atento e lúcido chamou a atenção para o momento em que Vera, personagem de Danielle Ornellas, apresenta a casa para Conceição. Existem quartos, vários quartos! Quantas vezes vimos, na teledramaturgia global, uma casa ampla e arejada, de gente pobre e digna como aquela? Eu nunca havia visto. Quantos de nós tivemos uma casa assim e não a vimos ou vemos representada? Uma casa simples, mas grande, com quintal, amorosa e espaçosa! Subúrbia está mostrando isso. Para os meus olhos cansados que já viram muita coisa insólita sobre o negro na TV, é algo novo.
A amiga de Conceição vai para a igreja e quer levá-la para o seu mundo. Conceição recusa, delicadamente, ela tem sua própria fé, sua santinha Aparecida, como grande parte dos pretos das Minas e dos interiores de São Paulo (olha a diáspora negra aí, gente!). Ela quer experimentar o que é dormir numa cama na casa de verdade de uma família preta, que poderia ser a família dela, que desde o momento da acolhida ela sente como sua família. Conceição quer degustar o que é estar numa casa de verdade, cujos donos são gente igual a ela. Aos desavisados, lembro que a primeira fala da menina Conceição ao chegar à casa da futura patroa branca foi: “é a primeira vez que eu entro numa casa de verdade, tem até televisão.” Desculpem-me irmãos, mas meus olhos cansados que já viram muito do mesmo, estão abertos para enxergar o novo no tratamento da teledramaturgia brasileira aos negros e essa cena, a meu juízo, foi plena de humanidade e significado poético, por isso nova, no formato de abordagem à vida dos negros, em que pese o tipo de personagem negro escolhido para a trama.
Por fim, a cena que mais me emocionou é o primeiro dia efetivo de trabalho da menina Conceição. A singeleza com que ela, criança, não consegue ajeitar o avental, feito para uma mulher adulta e a naturalidade com que a patroa branca a ajuda. É assim mesmo, não é? Conhecemos essa história velha, mostrada, a meu ver, com arte. O afeto camufla a exploração, justifica que crianças negras trabalhem, afinal, a patroa precisava mesmo de uma empregada que dormisse no emprego. Conceição era uma pessoa de bem, digna de cuidar de suas crianças. Ela sentiu isso quando ouviu a história da menina. Deus e o diabo moram nos detalhes, não é?
Fiquei emocionada porque me lembrei do segundo período do meu curso universitário, quando tinha aulas aos sábados pela manhã. No quarto sábado de aula, quando chegava para subir a rampa da FAFICH, saiu esbaforida de um dos prédios chics que cercavam o antigo e decadente prédio da universidade, uma moça negra que gritava “Parecida, Parecida, me espera”. Aguardei, surpresa. Era Rosana que havia sido minha colega de turma no segundo ano primário, nove anos atrás. Depois de me abraçar, perguntar se eu me lembrava dela e de ouvir minha resposta afirmativa, ela me disse uma das coisas mais marcantes da minha vida: “eu trabalho naquele prédio ali e quando te vi da janela, há três sábados, eu sabia que era você. Eu sabia que você ia conseguir. Eu sabia que você ia fazer faculdade. E eu vim aqui para falar com você, mesmo sem saber se você ia se lembrar de mim, para te dizer que todo sábado de manhã, quando você sobe essas escadas, eu subo junto com você, eu entro junto com você na sala de aula. E quando você sair dali, formada, eu vou me formar junto com você.”
Eu, como vocês imaginam, chorei como choro agora, e só consegui abraçar aquela mulher-gigante e me recostar nos ombros dela, consternada por todo Axé que ela me dava. E, se vocês não entenderam, eu só consegui, como Rosana disse, porque tive uma família digna e amorosa, como a família de Subúrbia e que cuidou de mim como criança, quando eu era criança.
A cena me emociona, porque dentre todas as minhas colegas negras do segundo ano primário, éramos cinco, eu tinha oito, nove anos, elas tinham um pouco mais porque estavam repetindo a série, só eu não trabalhava à tarde como empregada doméstica, como Conceição e Rosana. A primeira na casa da doutoranda, a segunda na casa das professoras da própria escola.
Quando fui transferida para aquele grupo escolar, vinda de outro melhor, me colocaram no horário-tampão de 11:00 às 15:00, estratégia para otimizar o tempo de funcionamento da escola e garantir vaga para a super população de crianças do bairro operário. Pedi a meu pai que me transferisse para o horário das 7:00 às 11:00 e, por pouco ele não conseguiu, porque eu não trabalhava e poderia estudar no pior horário, segundo a diretora.
Eu me emociono porque até outro dia, meu pai me dava notícia dessas colegas que em dia de eleição, principalmente, passavam na casa dele para ter notícias minhas. Mais de trinta anos se passaram e eu continuava sendo a realização delas. E meu pai me contava que uma tinha cinco filhos, outra aparentava ser muito mais velha do que de fato era, outra tinha varizes assustadoras. Um dia, diante da falta de notícias, perguntei ao pai se elas não passavam mais por lá. Ele respondeu que passavam sim, mas decidira parar de me contar porque percebia que eu ficava triste e chorava escondido.
Em um lugar ou em outro, de Conceição, de Rosana de Parecida ou de Cidinha, essa é a minha história. É assim a nossa vida e, se nós mesmos não formos capazes de nos reconhecer em Subúrbia, quem será?
Foto: Érika Januza e Paulo Lins / Fabrício Boliveira
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