Se eu não chegar a ver, vai nascer de mim quem vem para ver
Por Cidinha da Silva
Eu gostaria de
assistir Subúrbia por simples deleite, como assisto Lado a Lado, mas fiquei tão
impressionada com as reações negativas, lidas e ouvidas, que me impus a tarefa
de analisar a mini-série e destacar o sem-número de boas impressões causadas
pela obra em mim. Mas é chato, confesso. Eu quero apenas ser telespectadora,
gostar, como gosto, e degustar o que mais me interessa, o texto.
Recuso qualquer roteiro
didático para acompanhar Subúrbia. O fato de autores, atores e atrizes terem
pensado isso ou aquilo no momento da concepção, não garante o resultado
performático desejado, ou seja, existe uma grande distância entre pensar a obra
e conseguir realizá-la. E todas as pessoas têm o direito de achar o que
quiserem! Abaixo a leitura de telepronto que alguns querem impor ao
telespectador. Tampouco, desejo criar um roteiro (didático) próprio para
amealhar seguidores. Sou do time de Carlinhos Brown, a poesia é necessidade
básica. Quero falar sobre um trabalho de arte que me emociona e traz elementos
importantes (e novos) para a teledramaturgia do negro, na verdade, sobre o
negro no Brasil, ainda. Tudo isso pelo meu olhar, nada mais!
Não me forçarei
a ver o que quer que seja, nem levarei meus discursos prontos sobre as mulheres
negras, por mais que os julgue criativos, supostamente consonantes com a tradição
(embora, muitas vezes, não passem de aspectos superficiais), para a leitura da telenovela.
Cada pessoa venda seu peixe com a técnica que tiver nas mãos, com a linguagem
de sedução e convencimento de idéias que tiver conseguido criar ao longo da
vida.
São muitos
interesses em disputa para “garantir” outras edições da mini-série. Tenho
consciência de que Lado a lado conta com atrizes e atores consagrados, com
lugar ao sol global garantido, na medida limitada em que artistas negros
conseguem ter garantias na profissão, fora das produções chamadas de época e
dos papéis de/para negros. Em Subúrbia, Haroldo Costa, ícone da cultura
brasileira, é conhecido na TV, entretanto, como grande especialista em samba.
Rosa Marya Colin é uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos,
porém, muita gente a está descobrindo agora, como Mãe Bia. Triste país, o
nosso. Mas, os tais interesses não me roubarão o prazer de assistir Subúrbia e
de me deter nos detalhes que me cativarem e me ajudarem no entendimento da
construção de um texto primoroso.
Agora volto a
falar sobre Lado a lado, quando me sentir mais livre, retomo Subúrbia. Eu nunca
pensei que Zezéh Barbosa (encarcerada por papéis cômicos e estereotipados)
pudesse umedecer meus olhos, mas a voz que ela emprestou à tia Jurema para
convencer o Zé Maria de que sua luta pelo fim dos maus tratos aos marujos nos
navios havia sido justa e vitoriosa, mesmo punido com a expulsão da Marinha, me
fez aplaudi-la em cena aberta. E Jurema lembrou ao Zé sua responsabilidade
sobre o sorriso de encantamento de Elias e dos outros meninos do Morro. E que a
luta de Zé Maria e João Cândido frutificaria para Elias e para os filhos dele.
Arrepiei! Fui ao Orun, em êxtase, e lá encontrei João Do Vale, que cantou para
mim: eu chego lá, queira ou não queira, eu chego lá! Se eu não chegar a vê, vai
nascer de mim, quem vem pra ver. Quando voltei, Zé Maria dizia que o alto mar
era seu chão. Poesia fina na novela das seis.
Como eu pensava,
João Cândido não foi soterrado pelos autores, ele aparece onde cabe na novela,
ou seja, na fala dos demais personagens. É assim que Guerra e Edgar interpretam
lamento indignado e convincente sobre a revogação da anistia aos marujos, a
expulsão de um grupo e a prisão do soberano João Cândido. No folhetim, João
Cândido tornou-se herói de todas as pessoas de bem. Por falar em personagens
negras destacadas, o enlevo da interpretação de algumas artistas brancas com a
personagem de Camila Pitanga é lindo, comovente, convincente, e expressa a
sincera admiração de Laura e Diva Celeste por Isabel.
Sinto falta de
que Isabel e Laura discutam os tratamentos morais diferenciados recebidos pela
busca de liberdade de cada uma delas. Isabel pode morar sozinha, a despeito das
idéias e posturas ultrapassadas do pai, que, em última instância, queria a
filha negra respeitável como uma branca, orientada pelos padrões morais
estabelecidos para as mulheres brancas. A irmã de Berenice, também negra, aparentemente
não trabalha, tem três filhos e não tem marido, sustenta-os com um dinheiro que
não se sabe de onde vem e não há problema por isso, ela cabe na lógica negra,
mais flexível também, porque considerada inferior, logo, seriam comportamentos
típicos de gente menor. Berenice tem um homem e não é formalmente casada e não existe
problema nisso, desde que ela seja mulher só daquele homem. Laura, por sua vez,
tem limites sociais muito mais duros no campo da moralidade, porque é branca e
sair da norma é coisa de gente menor, de gente preta. Seria muito interessante
que as duas discutissem isso para não consolidar a ilusão de que elas são
iguais e passam pelos mesmos problemas em uma sociedade atavicamente machista e
quem sabe, Laura até sofra mais.
E por falar
nele, no machismo, quanta poesia e delicadeza para Afonso esquivar-se da filha,
diante do nocaute de Zé Maria, causado pela mulher-estilhaço-Isabel no coração
de ambos, pai conservador e amante covarde, conforme auto-definição do próprio
Zé: eu vou embora. Ninguém precisa de mais um homem machucado aqui.
E Zé Maria
precisa segurar a onda, senão vai perder Isabel, já-já. Ou ele amadurece ou não
vai dar. Se for posar de pretinho desamparado, humilhado pelo sucesso da mulher
negra, fodeu! Minha heroína não retrocederá um passo, não diminuirá uma
centelha do próprio brilho para ter a companhia do amado aturdido pelo macho
interior, que não aceita a independência da mulher. Isso, nunca!
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