João Cândido, o neto de Francisco Ayrá
Por Cidinha da Silva
(...) Quase
ao mesmo tempo chegou aqui em casa o tio Aroni, compadre dos velhos e melhor
amigo do vô, acompanhado pelos filhos, Ajagunã e Anauá. Deram boa noite a todos
e o João Cândido, muito atencioso, os levou até vó Berna. Tio Aroni e a vó se
abraçaram em silêncio no calor daquela amizade de muitos anos. Os rapazes
tomaram a benção e abraçaram vó Berna
também. Depois dos cumprimentos, o tio pediu licença para preparar o corpo e instruções
do local onde deveria fazê-lo. O vô e o tio Aroni, pertenciam a uma espécie de
irmandade masculina, e quando um integrante morria, havia esse ritual, sempre
conduzido pelo tio.
A passagem dos três homens deixou um rastro de
aguapé, alecrim e alfazema. Umas folhas de pata-de-vaca e amoreira caíram do
saco de pano. Ajagunã e Anauá, os filhos da mata, nomeados pelo espírito das
folhas, cobriram o corpo do vô com um tecido branco cheiroso e o tiraram da
cadeira de praia para o quarto indicado por vó Berna. João Cândido pediu para
acompanhá-los, eles permitiram, mas só até a porta. Tio Aroni, por sua vez, já
estava na cozinha, maquinando os segredos dele entre ervas, folhas e água.
O povo, aos poucos foi chegando. Uma
infinidade de vizinhos, amigos, conhecidos, parentes, admiradores. Nossos avós
eram muito antigos e queridos no bairro que ajudaram a construir. Vó Berna
aproveitou a presença das tias Neusa e Dinda, dos tios Ainan e Aganju - só
faltava meu pai, o filho viajante -, e foi para o quarto ajeitar a roupa do vô
Francisco.
Emocionada, a vó nos contou que quando ligou o
ferro na corrente elétrica para passar a calça de linho e a bata de cambraia
brancos, cosidos por ela, lembrou-se do primeiro passeio de trem feito pelos
dois. Quantos vagões, quantos trilhos, quanta carga, quantos viajantes e ferros
de passar passaram por sua vida, toda vivida ao lado de vô Francisco. Enquanto
tirava os mais escondidos amassadinhos da roupa, recordou o ferro de passar
alimentado por brasas, o motor à lenha da maria-fumaça, as roupas da juventude
passadas pelo ferro antigo, as conquistas da família, a consagração de vô
Francisco como artista, a vida simples e feliz que os inscrevera no mundo. Como seria, agora, a vida sem ele?
Distraída no conforto das lembranças,
vó Berna não viu que Ayana e João Cândido a esperavam. Quando se apercebeu,
exclamou com seu jeito brincalhão: “Os
menino, cês tão aí, na espreita, acocorado feito dois calango véio?”. O primo
João Cândido tentou sorrir, mas o choro o fez correr para abraçar a vó. Ele
fora a única das crianças ausente no momento da passagem do avô. A prima Ayana
abraçou o abraço dos dois e choraram juntos.
Vó Berna os acalmou, esticou-se para
desligar o ferro de passar. O primo lamentou choroso que os homens não o
tivessem deixado acompanhar o ritual de limpeza do corpo. Vó Berna explicou
tratar-se de coisa de homem. “Eu também
sou homem”!, ele falou alto, do lado de fora a gente ouviu. “Um homenzinho de
doze anos”, vó Berna o consolou. “Ainda não é hora.” Nossa vó olhou-o na menina
dos olhos e percebeu que o primo estava abafado. Estendeu o coração para que o
João se abrisse no colo dela. “Ai, vó,
só vejo uma baleia encalhada”, ele começou a falar, mas foi interrompido por
Ayana. “Aonde, JC?” “Na praia, Ayana.” Ele respondeu impaciente. “E tem um
monte de gente querendo desencalhar a baleia. Eu também estou lá, tento, tento
e não consigo. O tempo vai passando e a baleia vai morrer se não voltar ao
mar”. O João chorou, calado. Vó Berna o incentivou a falar mais. “Continua meu
filho, liberta sua baleia.” “Ah... vó, é tão difícil. A baleia é pesada, enorme
e eu sou tão pequeno. Ela vai morrer.
Vò Berna ao relembrar a conversa com o João achava
um jeito de falar conosco sobre a impossibilidade de evitar a morte e também
sobre os recados que ela nos trazia. “A
morte, João, chega para todos os vivos: animais, plantas, gente, até para a
água. Quando ela alcança alguém próximo e querido, é um sinal para corrigir
coisas desandadas na jornada, ou para afirmar o caminho certo, se as coisas
estiverem bem. O importante é encarar a morte como passagem para um tempo de
melhor-viver. Se as estradas por onde andamos estão feias e nubladas, sujas e
espinhosas, é hora mudar de lugar, procurar o sol, os pássaros, as flores. Mas
se estão bonitas, floridas, ensolaradas, além de permanecer nelas e desfrutar
de todas as belezas e cores, devemos convidar mais gente para fazer o caminho
ao nosso lado.” “Mas e a baleia, vó? Vou deixar ela morrer?”, o João pergunta
angustiado. “Existem coisas, meu pequenino João, mais fortes do que a nossa
compreensão e as nossas forças. Elas acontecem, simplesmente. O sofrimento da
baleia é o maior de todos, a dor física, a falta de ar e água, a preocupação
com as baleinhas desamparadas no mar.
Uma dor enorme, quase do tamanho dela, deve produzir aqueles roncos de desespero no estômago da
coitadinha, e ela, neste momento, não passa de um peixão sozinho e
indefeso.” “Oh, vó e a baleia, ela
também pensa na vida dela quando está morrendo?” “Talvez, Ayana, o que você acha?” “Ah vó,
durante aquele tempo sem conta, ela deve pensar em todas as atitudes
baleísticas da pessoa dela: o susto dado nos humanos, mesmo sem querer; os
cardumes devorados por pura gula, aproveitando-se da sopa que os peixes deram
em frente à sua bocarra. Essas coisas de baleias.” “Imagino também vó”,
completa o João reflexivo, “que brincando no oceano, ela apitou como um navio e
deu falsas esperanças a um grupo qualquer de náufragos. Isto deve ser uma
lembrança doída para qualquer baleia pensativa”.
Vó Berna se alegrou com o entendimento do ciclo da
vida demonstrado por seu neto destemido e por Ayana, sua flor mais bela. “Isso
mesmo, crianças, vocês estão compreendendo o sentido da morte para quem fica, a
necessidade de ressignificar o viver. Aproveito para entregar a vocês os pentes
deixados por Francisco para cada um. João Cândido, meu menino, seu avô sabia
que mesmo sem conseguir desencalhar a baleia, você não desistiria de tentar,
talvez até telefonasse para o corpo de bombeiros”, brinca nossa avozinha
matreira. “Por isso, ele destinou a você este pente, símbolo de duas coisas
principais, a generosidade e a solidariedade. Para você, Ayana, nossa netinha
de saúde mais frágil quando nasceu, ele deixou este aqui, o pente da
perseverança. Lembra-se da história da flor amarela de cinco pétalas da cor do
sol? Ele contava para acalentar seu sono enquanto pedíamos aos deuses infantis
para não levarem você da gente.”
“Que fofo era o vô. Os
pentes se completam, não é vó? O pente do JC também poderia se chamar
perseverança. Eu fui cuidada pelo amor de vocês e isso me ajudou a vencer minha
batalha pela vida, no entanto, o pente do amor foi descansar nas mãos do
Abayomi, o curioso pelo início das coisas.”
Vó Berna se emocionou
novamente com a sagacidade dos primos, mas interrompeu as lágrimas para dar uma
ordem -- João deveria levar a roupa passada até a porta do quarto onde estavam
os homens, com cuidado, para não amassar.
Trecho do livro Os nove pentes d'África, de Cidinha da Silva.
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